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Posted by Bruno Fehr in

Nesta cidade estranha, no meio de uma cultura que ainda não consegui entender a lua tem sido a minha única companheira. Estou há 4 dias como o actor do filme "Lost in translation", estou a sofrer de um Jet Lag incrível e está a ser impossível colocar o sono em dia, pois o dia aqui é a noite no país onde moro e tenho de andar de escritório em escritório, da mesma empresa, a ser apresentado e ver os cantos à casa, e à noite não tenho sono pois é o dia de onde venho. Sinto-me a explodir de sono durante o dia e fresco como se acabasse de acordar durante a noite. Perco-me nesta cidade que como eu não dorme. Tudo é grande quer em dimensão quer em preços, tudo é extremamente organizado as pessoas extremamente disciplinadas.
Ontem durante um jantar da empresa, levantei-me para ir ao WC e quando voltei à sala estava sozinho, nem uma pessoa me esperava e eu não sabia onde estava nem a que distancia estava o meu hotel. A empregada de mesa, simpática, disse-me que o patrão se tinha levantado e deixado o restaurante e que todos os funcionários o seguiram. Ninguém comeu!
Se na Alemanha o meu patrão durante um jantar saísse, ninguém o iria seguir, primeiro a comida e o patrão se amuou que se foda. Não consigo perceber esta mentalidade e não encontro uma forma de me adaptar.
Mas nem tudo é mau o nascer do sol é lindo não sendo à toa que este é o país do sol nascente.

"Mas nem tudo (...) do sol nascente."

E foi assim que, depois de voltar para casa. Depois de me encontrar à frente do computador,  o meu fiel companheiro de longas viagens (tanto físicas; quando viajava por motivos de trabalho, para fora, como mentais, quando viajava sem sair do lugar) que me decidi a escrever as minhas memórias.
E eram estas últimas viagens, as mentais, ( um dia à saída do metro, alguém me deu um panfleto sobre um workshop onde explicavam e ensinavam como fazer viagens mentais, sendo esta técnica conhecida desde a antiguidade por personalidades como Cícero e Platão. Eu fui) que me iriam dar memórias e ideias para o que iria escrever a partir de então.
O simples facto de poder fazer o que quisesse, sem que isso afectasse tanto o meu corpo como a minha vida, era fantástico.

Continuará no próximo cadáver esquisito... ou não.



Sem nexo :)  

Posted by Bruno Fehr in

Gosto de ti porra!

Desde daquele dia em que te vi, esparrameirada no passeio, pois tinhas tropeçado num calhau. Fiquei apanhado do clima por ti. Observei o teu cu enquanto te compunhas e rapidamente te afastavas ainda manca, não sei se do tralho ou se partiste um tacão. Ca ganda cu. Ganda não do tamanho mas da qualidade. Imaginei-me a espancá-lo enquanto que dava umas cabeçadas com o meu Zé Tólas. Se isto não é amor, então não sei o que é!

Dizem-me que não sou romântico, só porque não ofereço ramos de urtigas ou lá o que elas gostam. Claro que sou romântico, acho que é romântico dizer a uma gaja que ela me dá câimbras genitais sempre que passa por mim, que gostava de ter 3 mãos só para lhe segurar os peitos e ver se eles rebentam. Dizem-me “ah e tal, aquilo são mamas de supermercado”. E então? O que interessa se ela comprou as mamas em saldos? Não sou racista não tenho nada contra a

silicone

Mas o que é que este gajo quer que eu escreva a partir desta palavra?! A verdade é que fiz logo uma busca pelo Google e mesmo assim não tive nenhuma epifania ou inspiração, mas descobri o nome do químico inglês que foi pioneiro no estudo dos compostos orgânicos da sílica (ou dióxido de silício) e que inventou a silicone, usada para inúmeros fins que não só os da cirurgia estética ou reconstrutiva.
E já não tinha uma aula de química há muito tempo. E desculpem se me atrasei a escrever este cadáver esquisito. A verdade é que, entusiasmada com a matéria, (e isto de ser-se autodidacta com internet dá-nos demasiada liberdade) dei por mim a ver minerais, imaginem! O quartzo, por exemplo, é o mineral mais abundante da terra, é composto por tetraedros de sílica que formam um prisma. Por outro lado, o espodúmena, (que nome lindo) é mais raro e é a principal fonte do Lítio e este último (vou já acabar, ok?), para além de ser usado nas baterias eléctricas, é considerado como anti-psicótico e serve como tratamento para o transtorno bipolar.

 

Posted by ipsis verbis in

Tinha acabado de chegar a casa do trabalho, depois de lhe ter telefonado, depois de ter fumado um cigarro à entrada do prédio e depois de esvaziar a caixa do correio.
- "de amanhã não passa! vou colar aqui a porra do autocolante a proibir publicidade..."
Descalçou os sapatos, dirigiu-se para a cozinha e serviu-se de um copo de leite fresco.
Enquanto vagueava pela casa de copo na mão, verificava que em cada divisão, haviam coisas amontoadas, encaixotadas e desarrumadas, como se se tivesse mudado há dias. "Amanhã", dizia ela para os seus botões, "amanhã arrumo isto tudo"
e assim deixar-se-ia assentar por ali. Mas o amanhã dela era sempre adiado.
Sentou-se no sofá e acendeu um cigarro.
Estava cansada do trabalho. Triste por ele não poder ir ter com ela e chateada por não conseguir parar de fumar.
E enquanto pensava qual das 3 lhe estava a pesar mais, o seu telemóvel interrompe-a.
- "estou?"
(era um número anónimo, claro)
- "sim?"
(e quando não é publicidade, do outro lado nunca dizem nada, claro outra vez)
Manteve a chamada, mas não disse mais nada e começou a fumar um outro cigarro.
Passados 5 minutos, ouve do outro lado do

telemóvel:

"ainda não percebo a importância deste objecto na minha vida. Antigamente era uma ferramenta de engate, trocas de sms's sem fim ao ponto das páginas da minha factura detalhada no final do ano serem mais que as da lista telefónica da zona centro. O telemóvel era como que um artigo essencial de vestuário, andar sem ele era o mesmo que andar nu, tinha, sempre que me esquecia, de voltar atrás para o ir buscar. Hoje é um adereço, é bonito, moderno, as pessoas olham e admiram-no mas não serve para nada. Se anda comigo ninguém me liga, se o largo por 5 minutos tenho 10 chamadas não atendidas, se fico sem bateria todo o mundo precisou de falar comigo com muita urgência... mas já passou, já não é importante pois eu liguei de volta. Por que raio se preciso de falar com alguém mas não quero ligar a ninguém, o raio do telemóvel não toca? Se espero uma chamada ela não chega, mas se vou cagar já toca e normalmente quando já estou na sanita com o cagalhão a meio gás e telemóvel está do outro lado da casa. Cagalhão para o telemóvel!!!
- Sim?

- Olá, onde estás?

- Em casa...

- O que estavas a fazer para demorares tanto a atender?
- Estava a pensar em ti...

- Ooooooohhhh que querido!
"

Banco  

Posted by Bruno Fehr in

No momento em que a vi apeteceu-me tocar-lhe, abraça-la como se ela fosse chorar. Dizer-lhe "está tudo bem e vai continuar tudo bem", mas um estranho não pode fazer isso. Nos primeiros segundos senti que a conhecia, via-a como especial. Os meus pensamentos saltitavam entre o sonho e a realidade. Sonhando pensava "podes ser tu", para de seguida pensar "podes ser tu quem me irá magoar". Porque é assim mesmo, o nosso lado sonhador sonha, ilude-se enquanto o outro nos diz "vais-te lixar". Qual ouvimos? O sonhador, claro.

É este o poder que uma mulher exerce sobre um homem, o de conseguir deixar o mais seguro dos homens, o mais confiante dos homens a sonhar como um adolescente perdido e confuso. Perdido em pensamentos banais, planos banais de uma vida activamente banal.
Os nossos olhares tocaram-se. Tocaram-se distraidamente. Não a esperava ver, ela não me esperava ver mas o olhar não foi desviado. Olhei-a bem, olhei bem fundo nos seus olhos enormes e muito abertos. Vi muito mais do que queria ver, vi beleza, vi carinho, vi curiosidade e vi dor, muita dor e vi algo de perturbador. Sorri para ti com segurança insegura de quem viu o seu coração invadido por um simples olhar. De quem viu os seu sentimentos remexidos até aqui escondidos num local mais escuro e protegido que a caixa forte de um

banco


... dinheiro... tempo... e agora já não consigo pensar noutra coisa senão em férias. Férias de tudo! Férias permanentes em praias desertas, com água cristalina e areal a perder de vista. Saladas e sumos naturais. Carradas de protector solar e depois mais carradas de hidratantes pós-sol... ahhh, lembro-me das longas tardes de verão que se estendiam até às 10h da noite. As massagens em spas de fim-de-semana. Os mojitos, caipirinhas, águas de coco e sumos naturais. E o de maçã e lima, fresco (e não com gelo) era divinal. Bebia sempre dois de seguida. Começava a arrefecer-nos de baixo para cima. Primeiro na zona do estômago, depois todo o peito e garganta, e segundos depois, já sentíamos a testa mais fresca (sorrio). Vem-me à memória, outras memórias... Lembro-me, por exemplo, do pequeno banco branco de madeira, onde me sentava ao sol, na casa de férias dos meus avós, enquanto construía pequenas catedrais com areia molhada. Aquelas manhãs quentes em que era necessário molhar o banco antes que me pudesse sentar nele. E a piscina era apenas a segunda distracção desses dias. Anos mais tarde, aquele beijo dado no banco do jardim, em frente à escola secundária, no último dia de aulas antes das férias grandes.. O calor nesse Junho estava insuportável. E aquela sombra, mesmo junto à fonte que, com a ajuda de algum vento nos trazia gotas de água para nos molhar, pediu aquele momento. Seria o primeiro beijo a fazer estremecer-me por dentro. E foi lindo.

 

Posted by ipsis verbis in

Preparava-se para escrever. Sentada ao computador, de cigarro na mão e à espera do café que já cheirava da cozinha.
Não estava inspirada. Olhava para o fumo e demorava-se a imaginar pequenas nuvens animadas. Levantou-se para ir buscar o café. Estava um calor estranho naquela noite, mas o café quente soube-lhe bem.
Voltou a sentar-se de frente para o monitor branco. Olhou para a estante dos cds e tirou um sem escolher.
Colocou os fones.
Encostou-se na cadeira, com a cabeça para trás e fechou os olhos. Agora sentia apenas a mistura do café, de um segundo cigarro e da música.
Acabou o cigarro e o café. A música continuava... terá adormecido?
Estava tanto calor naquela que a ideia de um duche frio não lhe saía da
cabeça, a minha que parece querer explodir ou implodir, já não consigo pensar logicamente se é que alguma vez o fiz. Apesar da ressaca ainda me lembro dela. A sua imagem vem-me à memória como se fossem diapositivos, imagens estáticas de um passado distante, que afinal, foi só há algumas horas mas anos luz de álcool.
Estava eu divertido a beber submarinos, uma actividade normal nos últimos tempos tentando colocar-me numa espécie de coma que é a única forma de eu dormir, quando ela entrou. Estragou-me logo a noite, pois ela é linda. Depois disto tive de beber mais, beber para dormir e beber para a esquecer. Mas como posso eu esquece-la quando ela está sempre presente?
Fecho os olhos e vejo-a, abro os olhos e vejo-a, olho para o outro lado da cama e lá está ela. Sim, ela está na minha cama e ao vê-la tenho de me levantar e beber mais um pouco. Sei que logo à noite ela estará lá, no mesmo bar, à mesma hora e sei que vou acabar na mesma cama que ela.
20 anos de casamento tem destas coisas.


Chamas  

Posted by Bruno Fehr in

Acordo com fumo a invadir-me as narinas. Os meus olhos piscam, não os consigo manter abertos. É quase impossível respirar... A temperatura é insuportável. Os pelos dos meus braços desfazem-se. Uma onda de fogo vinda de baixo atinge-me, dispo as roupas que tenho em chamas. Choro em agonia soltando um grito silencioso, sinto a cara como que a derreter. Cambaleio em desespero, buscando oxigénio mas numa direcção não definida. „Mãe, pai, Ana“... Tenho de chegar a eles. Como que por instinto encontro a saída do quarto, a minha perna fica presa quando o chão de madeira cede parcialmente. Vejo a Ana envolta numa bola de chamas numa estridente agonia que me fura o coração. As minhas lágrimas secam assim que se formam. Olho o corredor e vejo um corpo negro no chão. Não sinto forças para lutar, sinto-me sim preso a este chão por uma força que não entendo. Todo o meu mundo, toda a minha vida, está em
chamas
e outras chamas como línguas vermelhas e aguçadas, quentes e abrasadas. É sempre assim. Quando me sinto no limbo, (entre o que devo ou não fazer) penso sempre no inferno e não sei explicar porquê. Continuo?
Ainda estou a pensar se continue em frente, ou se vire para a direita. Melhor mesmo, só para outro país... Acabei de me queimar com o cigarro. (Não, não tenho dessas taras) Um palmo mais à frente e estaria a colocá-lo no cinzeiro, assim, como tive que travar de repente por estar a olhar para baixo, deixei cair a puta da beata... Virei realmente para a direita porque fraquejei.
São os nervos agora. Consigo senti-los à flor da pele.
Estou a chegar e já só me apetece desistir da ideia e voltar para trás... Ai... Hoje teria sido um bom dia para não ter saído de casa. Teria inventado uma gripe, um tornozelo deslocado... Pfff!
Hoje, se não tivesse já combinado e recombinado coisas, teria sido um bom dia para ter ficado na cama.
Visitar parentes e conhecidos que já não vemos há muito tempo é sempre desconfortável. Bem, pelo menos para mim. Mas pior que isso, só mesmo funerais e
casamentos
que vejo agora como ilusões. O meu corpo cede, lentamente sinto-me a desistir. Ouço uma voz que me chama, é o meu pai que irrompe pelas chamas pegando em mim, soltando-me. Volto-me para o abraçar mas ele já lá não está. Vejo-o ao longe tentando libertar a Ana das chamas e elas tomam-no em segundos, no momento em que o chão cede e os vejo desaparecer à minha frente.
O meu pai, a minha mãe, a Ana. Todo o meu mundo destruído enquanto eu ainda estou nele.
No meio de um calor que não sinto, gelo no local onde estou. O meu mundo ruiu e sem ele não tenho onde

viver.
E era mesmo isso que eu ia fazer. Mas antes, só queria descansar...
Já longe do desconforto, chego a casa e dirijo-me para a sala. Um copo de vinho para acalmar é sempre reconfortante. Pego numa garrafa ao acaso e abro-a.
Sentei-me no sofá com os olhos postos no ecrã da televisão desligado, e fico a olhar para o meu reflexo.
O vinho não é nada de especial. É alentejano e tinto, (embora na garrafa esteja escrito que a cor é de um "rubi intenso"), e alguém mo ofereceu recentemente. Acho eu...
E já estou a ficar com sono. Grande vinho!

Semi-frio  

Posted by ipsis verbis in

Estava uma manhã solarenga e havia já movimento na rua principal. Seriam umas 8h...
Acordar sem relógio ou telemóvel por perto obriga-nos a observar outras coisas primeiro e eu observei tudo, enquanto fumava o primeiro cigarro à varanda.
O calor que já se sentia e fizera desabrochar as peles que agora se mostravam coloridas pelas marcas de outras roupas. Os sons de diferentes línguas e o cheiro de vários perfumes... a calma e a paz... isto tudo inundava-me de prazer e eu não pensava em sair daquele sítio tão depressa. Estou de férias. Sozinho e, para já, não preciso de mais nada, a não ser o meu portátil e o meu tabaco.
O primeiro café do dia, surgiu por volta das 10h da manhã, numa esplanada cheia de pombos e gentes. Bebi-o como quem bebe um copo de vinho... e demorei-me nele até ficar
Frio.
Gelado é como me sinto. Não sei por que estou assim, tremo por todos os lados. Estou só. Caminhando na neve sozinho no mundo. Este mundo é branco, lindo mas gelado e eu congelado sem forças para lutar. Combato-me tentando escapar, quero ser livre sair desta prisão, mas sem sucesso. Sinto que estou algures no tempo ou quem sabe numa vida passada. Choro, grito mas ninguém me responde, ninguém me ouve, ninguém quer saber. Tenho medo. Já vivi esta vida não sei dizer bem quando, mas há muito, muito tempo já aqui estive, neste local, sentido o mesmo... frio. Luto novamente, revivo a dor.
Se conseguisse falar não saberia o que dizer. Se conseguisse mexer as pernas eu fugiria, mas se conseguisse mexer os braços tomaria a minha vida, só para não tomar a tua.
Por favor ajuda-me a sair daqui, está frio deixa-me entrar, abre-me a porta, ajuda-me a acordar.



Fim

Se conduzir...  

Posted by Bruno Fehr in

Não sei quem sou nem o que faço aqui. Sei que estava em casa e resolvi sair. Bebi, bebi muito. Não sei quanto nem importa. Olho em volta e não conheço ninguém. Mais um cigarro, mais um vodka e sigo viagem. Estou zonzo, sinto-me a querer vomitar. Abro a porta do carro e mesmo antes de entrar vomito. Sinto-me mais leve mas mais zonzo. Ligo o carro e sigo sem rumo.

Nem duzentos metros conduzi e bati em algo... uma pessoa.

- Foda-se!
Deixei o carro ir abaixo. Travei-o depois e olhei pelo retrovisor. E antes de ver mais alguma coisa, vi os meus olhos cheios de medo.
Eu estava a tremer por todos os lado. Desliguei o rádio. Respirei fundo, e desapertei o cinto.
Não queria ver o que tinha feito. Esperava que a pessoa estivesse bem, que tivesse sido só um arranhão.
Mas acho que o arranhão estava no meu carro e não naquela pessoa.
Abri a porta, pus um pé no chão e... Foda-se o que é esta merda?! E era mesmo merda, e parecia humana.

Com a sorte que tenho, o mais certo foi ter atropelado alguém que estava a aliviar-se mesmo aqui.

Parei o carro e saio. Vejo um jovem imóvel no asfalto, "que fiz eu?". Hesito entre fugir ou ficar, não fujo pois uma multidão já se encontra no local muitos mais se aproximam. Na minha cabeça está um furacão de pensamentos afogados em álcool. Não consigo parar de olhar para o rapaz no chão, "destruí a minha vida. Pior, destruí a vida de alguém, pois a minha já não valia nada".

As vozes das pessoas à minha volta, não passam de ruídos dos quais só distingo as palavras "bêbedo" e "morto".

- Calem-se, caralho!
Sento-me no chão, com as mãos a tapar a cara. Não me sinto bêbedo e nem sequer estou nervoso.
Sinto-me no limite entre o que penso que sei e o que é mesmo. E aquele corpo ali no chão rodeado de pessoas faz-me acreditar que estou mesmo acordado e que isto foi mesmo um crime.
Sinto o cheiro do sangue. Mas não quero saber se aquilo ali, apenas a uns passos de mim, é já um cadáver.
Quero voltar atrás no tempo. Quero não ter feito aquele brinde, que se viria a repetir pela noite fora. Quero acordar...
Foda-se! Estou atrasado para o casamento.

Ela  

Posted by ipsis verbis in

Tinha acordado tarde. Tinha adormecido quase de manhã. Atira-se para fora da cama e com os pés descalços apressa-se pelo corredor.
Entrou de rompante na casa-de-banho onde quase atropelou o companheiro de casa.
- sai! estou super atrasada...
- tem calma que eu ainda não estou pronto.
- Mas tu já tomaste banho! sai!
De um empurrão, tira André, com a escova de dentes ainda na mão, da casa-de-banho.
Fecha a porta e prepara-se para o banho.
Do outro lado da porta:
-Até logo.
Deste lado, nada. Típico dela, não falar mais que o estritamente necessário quando ainda está ensonada...
A água quente estava a deixá-la num estado ainda maior de sonolência, não estivesse de pé tinha dormido ali, assim, quase que caíu na banheira. Abriu os olhos e exclamou:

- Opá, que estúpida. Acoooorda!

É sempre a mesma merda, dorme a dormir, dorme acordada, dorme até em pé. Passa a vida fechada num mundo imaginário. Por vezes questiono-me se ela é normal.

Gostaria que ela fosse homem, porque dizem que não se bate em mulheres. Se fosse homem eu desmontava-a à pancada até ela acordar. Ela se fosse ele, pois nos homens parece que é aceitável bater.

Acooorda badalhoca, acorda desse sono que mais parece um coma. Abre os olhos e olha à tua volta, com olhos de ver, sai desse teu mundo de ilusão, cheio de Humpty Dumpty's, cavaleiros andantes, princesas, príncipes encantados e fadas madrinhas.

O mundo é de, fritos da tola, xungas em carros xuning, falsas pudicas, príncipes disfarçados e fodas à bruta.

E isto fazia sentido. Ultimamente, só saía com os amigos mais próximos, porque sabia que não ia ter que aturar nenhum penetra no grupo, que mais tarde se demonstrasse autêntico frito. Esta opção, ao mesmo tempo que criada por si, aniquilava qualquer contacto que pudesse vir a ter fortuitamente com um desconhecido. Andava de transportes públicos, e das poucas vezes que saía a pé, levava com os faróis azul-cueca-flash, e todo o aparelhómetro de alguns automóveis espécie lego-kinder. Só tinha conversas de merda com o pessoal do costume. [a aprendizagem, descoberta e vivências, passavam para um outro plano. O plano do esquecimento] . Pisava a cada passo que dava, Leonardos DiCaprio. E as fodas... bem, as fodas eram quecas rápidas com direito a açoites na nádega direita.

Voltava para casa, demasiado cheia dela própria, mas só até se sentar em frente ao computador.

Aí ela vazava tudo o que queria fora dela, quer seja ao escrever os seus sonhos, pensamentos e ideias em páginas perdidas no mundo dos blogues, Hi5's, NetLog's e outras. Expulsava o que queria, dizia o que pensava. Falava com estranhos em MSN's, Skype's, etc. Sentia-se de facto mais leve, mais livre, mais ela, mas não era ela, era sim o sono profundo pelo qual ela geria a sua vida. O que escrevia não era na verdade uma libertação mas sim o oposto, pois as palavras estavam presas ao seu sono profundo que era a sua vida. Em chat's ela não era ela, era sim quem queria ser. A cada palavra, a cada frase desta sua falsa libertação, ela estava cada vez mais presa ao seu mundo de ilusões.

FIM.

Cadáver esquisito III  

Posted by Bruno Fehr in

"É natal, é natal, é natal natal. É natal é natal é natal natal", canta a minha mulher dia e noite, noite e dia. A burra nem sabe a merda da letra. Sabendo do meu ódio pelo natal, massacra-me, tortura-me. Já lhe comprei a merda das calças de cabedal e o casaco estúpido de pele de antílope com mangas em malha, 600 Euros voaram assim em minutos. E ela? Ela não pára de cantar e decorar a casa com símbolos estúpidos, num completo desrespeito por mim. Ela não merece sequer umas luvas de pele de piça, quanto mais o que lhe comprei.

Observo as meias que ela coloca sobre a lareira, uma com o nome dela, uma com o meu nome e uma pequenina com o nome da cabrão do gato dela, que me mija todas as noites nos sapatos. Mentalmente canto “pró natal o meu presente eu quero que seja... ver este gato esfolado com as tripas de fora, pendurado sobre a lareira”, sim, eu sei que fugi ao ritmo da música. Acham que me importo?

Importo-me tanto como fazer uma mistela fatal qualquer e dar ao bichano de presente, para a sua ceia de Natal. E se ela fosse menos esperta, em vez do bacalhau e do perú, fazia um tareco assado no forno... o pior é que nem eu nem ela comemos carne. E peixe, só o bacalhau, nesta altura. Porque ela assim o quer...
Agora a meia com o nome do gato é que me dá cabo dos nervos. Sempre que olho para ela, apetece-me meter o raio do bicho lá dentro e atirá-lo para a lareira, feito tocha felina. Ahahah. Eu sei que ela nunca desconfiaria que teria sido eu. Para ela, eu adoro gatos. Brinco com o cabrão todos os dias enquanto ela está por perto, mas quando não está, fecho-o no corredor o dia todo, e sossegadamente, acomodo-me no sofá a ler um livro. De vez em quando olho para a porta de vidro da sala, e vejo-o. Sinto aqueles dois olhos a examinar cada movimento que faço...

Sempre que me levanto, ele levanta-se e dá voltas sobre si mesmo. Mas não mia. Comigo não pede nada (parece que afinal os gatos também se ensinam). E se por acaso se esquecer e miar, sem ela por perto, é chuto a mais sobre o pêlo.

Mas que se foda o gato, mais dia menos dia, vendo-o ao restaurante chinês aqui do lado, vendo não, dou-o, aliás pago para que fiquem com ele e façam um belo de um Chop Suey.

Acordo e vou para a cozinha, lá está a minha mulher com uma das minhas camisas e em cuecas. Ligo a máquina de café, abro o jornal e sento-me à mesa. Reparo numa noticia, “divórcios em Portugal disparam em 2008”, acredito, deve ser da crise que nos afecta a todos e o divórcio é sempre um bom investimento, principalmente para elas.

A minha mulher passa para um lado e para o outro, dou por mim a olhar para ela, sem sentir. Antigamente, só de a ver assim despida, deixava-me louco, ela não me largava eu não a largava, havia química, agora há... não sei, há.... companheirismo. Eu moro aqui, ela mora aqui e não nos evitamos mais porque partilhamos a mesma cama.

A aliança no meu dedo tem o nome dela, a dela tem o meu nome. Estamos marcados como propriedade um do outro, temos até o registo dessa propriedade no cartório. Já não há luta, desafio, há um desconfortável conforto, uma rotina maçadora. Já não a amo se é que alguma vez a amei e parece-me que a falta de sentimento é mutua.

“Querido?”

“Diz!”

“Eu já tenho o teu presente, mas não te perguntei, o que queres para o natal?”

“Se já compraste, não vale a pena eu dizer”

“Eu quero dar-te algo que precises, que queiras realmente”

“Queres mesmo? Mesmo que te custe?”

“Sim, quero”

“Este Natal, quero o divórcio”

"És tão parvo... Deves pensar que sou o Pai Natal. Vá diz lá..."

"Já disse! Quero o divórcio: Não te aguento mais. Não dá. Acabou!

"Mas tu estás parvo?! Que bicho te mordeu?"

Penso: Não me mordeu bicho nenhum porque eu não o deixo, mas respondo-lhe: "Já disse. Toma as devidas previdências. Quero sair de casa antes da consoada!"

"Mas tu estás a falar a sério? Que se passa... Olha que eu desato a chorar..."

"Não digo mais nada."

"Diz-me o que queres que eu faça, para ficares?"

"Para ficar? Tu queres mesmo que eu fique, seja como for?"

"Sim. Faço o que tu quiseres. Pinto o cabelo, rapo-a em forma de crista, faço-te brigadeiros todos os dias..."

"Tiras o gato de casa?"

"Hã?"

"O gato sai e eu fico!"

"O gato?"

"Sim, o cabrão do gato vai para a rua e eu fico em casa. Aceitas?"

"Mas, tu gostas tanto do Arlequim"

"Pensas tu! Detesto gatos e estou a começar a detestar pessoas que gostam deles..."

"Mas tu estás sempre a brincar com ele... estás a gozar comigo?"

"Brinco com ele quando estás a ver... Não estou nada gozar. É ele ou eu. Escolhe. Vou comprar tabaco. Volto já."

"Espera... mas eu gosto de ti..."

"E eu de ti... Pára com isso. Não comeces com merdas... . eu não consigo viver mais nesta situação. Eu não quero a porra do gato cá em casa. Vende-o. Dá-o a uma amiga tua. Mata-o... mas cá em casa, se ele ficar, saio eu. E se eu sair, é com o papel assinado por ti."

"Eu gosto tanto do Arlequim..."

"Pára de chorar. Aquilo é só um gato!"

"Mas ele faz-me companhia quando tu não estás."

"Se já tivéssemos um ou dois filhos, como eu quis, companhia não te faltava!"

"Então é isso?! A conversa do gato é por causa da conversa dos filhos?"

"Não. A conversa dos filhos é por causa da tua conversa sobre companhia... um gato não faz companhia. Nós é que lha fazemos."

"Não sabes o que dizes..."

"Dá-me um dos teus cigarros... (fumo) sei o que digo e digo-te mais... Aquela meia ali pendurada na lareira com o nome do gato é para eu me rir?"

"O que é que tem?!"

"Mas tu tens 10 anos ou envelheceste 50 e vives sozinha com 200 gatos?! Não te reconheço, pá..."

"O quê? Eu sempre fui assim. Sempre gostei de gatos e sempre os tive... "

"Oferecer presentes a um animal, é estúpido!"

"Não. Estúpido és tu! E insensível também. Quando trouxe o Arlequim para casa, não me disseste nada. Até te mostraste contente com o meu presente. E agora, 1 ano depois fazes-me isto?!"

"Arlequim, então é esse o nome do bicho?”

Ao perguntar-lhe novamente se me dá o divórcio ela nega-o. Acho que ela me irá sugar a conta bancária e até o sangue só para me deixar em paz, me deixar viver. Como é possível não sentir nada por alguém que senti tanto.

Acho que ela anda caída por um gajo, não sei se teve algo com ele, mas sinto que quer. Sei que ela sabe que não será uma relação de futuro, mas quer e ao querer está a deitar tudo a perder e perdeu-me.
A menina inocente que não consegue controlar os seus apetites. A menina fofinha que quer ser amada e que diz nunca se ter sentido tão amada como por mim, deixa-se ir por um pedaço de carne, sem sentimentos, sem compatibilidade intelectual.
Quero o divórcio que ela me diz não dar e por o querer vou lutar por ele.
Olho para o gato o gato olha para mim e faz um Bfffffffffffffff,

"Bfffffffffffff?, Bfffffffffffff filho da puta!"

Pego no gato pela cabeça e sigo para o WC.

"Onde vais com o meu menino?"

Não respondo.

Chego ao WC largo o gato na sanita e puxo o autoclismo, dizendo:

"Querida, a sanita está entupida"

"O que se passa?"

"Não sei, pergunta ao teu gato"

Ela corre para o WC e solta um grito histérico.

"A propósito, quero o divórcio AGORA!"

Ele recosta-se no sofá. Pega no comando e liga a tv...

- Estás a ouvir? (grita ela da casa-de-banho)

- Estou, mas muito mal. Se abrires a porta, oiço-te melhor.

O som da água a correr, indicava que ela iria tomar um banho, e como sempre, demoraria mais de 30 min.
Apesar da confusão que se tinha instalado naquele dia, ele sabia que o melhor era deixá-la sozinha.
Levantou-se de um impulso e dirigiu-se para o Wc. Abriu a porta, e já o vapor cobria toda a divisão.

- Sai!

- Não. Quero falar contigo agora.

- Já disse o que tinha a dizer. Deixa-me. Vai-te embora...

Ele abre a cortina e vê-a, nua e sentada na banheira, com a água a cair-lhe em cima.

- Não estás a chorar? (pergunta-lhe indignado)

- Não.



FIM


Cadáver esquisito II  

Posted by ipsis verbis in

O escritor.

Pensei primeiro em fumar um charro. Mas não tenho nada aqui em casa, e depois dava-me para ter a mania da perseguição... O que pensando bem até podia dar um grande policial,
ou thriller... Bah... Veio-me à ideia o vinho de mesa que está no frigorífico. Mas já deve ser vinagre, ou sempre foi... ou lá o que é... Tenho que conseguir escrever algo de jeito! A editora depende de mim, e eu dos meus leitores. Estou sem vontade de pensar em merdas que outros já pensaram. Ler um livro de outro escritor é demasiado irónico. Não quero isso... ai as horas! Acho que vou fazer um chá para acalmar... porra! Agora não me sai da cabeça o Lewis Carrol... A Alice e o Coelho...

Ahahaha... estou maluco e a minha vida não é mais que um manicómio gigante, onde sou escritor de contos estranhos para crianças!

Estranhos não, porra! Os meus contos são normais, as crianças é que são estranhas, escrevo mesmo para as irritar, pois elas irritam-me! "Eu quero isto, eu quero aquilo", ahhhh, odeio pedintes, pior pedintes exigentes, "queres? vai trabalhar". Sim e porque não? Tenho uns ténis giríssimos, Adidas made in China, que foram feitos certamente por criancinhas. Bolas, os ténis estão muito bem feitos, bem melhores que aqueles desenhos sem nexo que os putos que eu conheço fazem! Odeio, que numa da minhas sessões de autógrafos imaginárias, venham aqueles pais babados, dizer: "O meu filho adora os seus contos e fez este desenho para si". Olho para o desenho e vejo um sol a rir, uma árvore e uma casa. Tudo torto e uns bonecos cabeçudos que representam alguém, que não me interessa quem são. São monstros. Dá-me vómitos.

Aceito e calo-me, querendo dizer, "espero que o seu filho tenha mais sucesso a fazer betão num obra pública, pois a arte não é com ele".

Viro costas e sinto um enorme "plim" dentro de mim. E se alguém naquele momento tivesse o dom da visão imaginária, veria em cima da minha cabeça, uma enorme lâmpada a brilhar. Todo eu era ideias. Todo eu tremia com a vontade de passar para palavras o que me soluçavam as imagens que ia construindo mentalmente. Saio dali a correr, para não me esquecer de nenhum pormenor. Na rua quase que consigo ouvir o "tlec tlec" das teclas do computador, com os meus dedos a pisar cada letra e a passar para o monitor as palavras, as frases e a fantástica ideia que aquele encontro estúpido tinha provocado. Não consigo parar de rir por me apetecer gritar "Eureka" no meio da avenida em pleno dia e compleamente sóbrio. Quase que me vejo já sentado a escrever a minha obra prima. O meu Nobel... e tropeço no poste que, alguns metros antes (posso até jurar) estava mais para o lado direito. Endireito-me e continuo a correr. Mais calmo, sentia agora o vento na cara. Ouvia todos os barulhos da cidade e já não ouvia o "tlec tlec" do teclado.

E a correria mantinha-me mais atento às pessoas, que não se desviavam da frente para me deixar passar, que à minha imaginação.

A minha imaginação corre, corre como corro eu. Olho para as pessoas e só vejo potenciais histórias para o meu próximo livro. Metade das gajas parecem-se com a fada Sininho, a puta é boa, canita mas boa. Apetece-me espancar todas as pessoas que se parecem com o Peter Pan, mas são tantos. Ahahahahahaaha. "Saiam da frente, o Capitão gancho vai a passar". Paro. Bati de frente contra uma velhota. Ela está no chão e não me parece em bom estado. No entanto não consigo parar de rir. Escuridão... Onde estou? Ao abrir os olhos parece que o tempo parou por momentos. Lembro-me de estar na rua, a rir de uma velhota aos gritos no chão e agora estou aqui. Mas onde? Estou vestido de branco. Chão branco. Paredes brancas. Tecto branco. Tudo é branco e almofado. É um quarto verdadeiramente acolhedor e confortável. Mas este fato que me vestiram, não dá grande jeito, a camisa obriga-me a abraçar o meu próprio corpo, não tenho liberdade de movimentos. Ouço um som. Uma pequena gaveta abre e um prato de papel, com uma papa estranha desliza para o interior do quarto, mas sem talheres.
"Hei", digo eu.
"Sim?" responde uma voz do outro lado da porta.
"Como é suposto eu comer com as mãos presas?"
"Com a boca!", responde a voz em tom de ironia.
"Precisa de mais alguma coisa?", diz a mesma voz.
"Sim, por acaso preciso"
"Diga lá, que eu vejo o que posso fazer"
"Coça-me os colhões"
A voz não responde. A pequena gaveta fecha e eu, rio, rio perdidamente, ouvindo o meu eco ao longe, em segundos ouço muitas outras gargalhadas, de felicidade incontrolável como a minha.


FIM

Cadáver Esquisito I  

Posted by Bruno Fehr in

A Viagem

Era uma vez, uma merda de vida, ou seja, a puta da minha vida.
Mas que raio faço eu aqui? Como é que cheguei aqui?
Um canudo na gaveta, resultado de 17 anos de estudo que afinal não me foi necessário. Andei a estudar só por desporto. Um bom emprego que me paga as dividas os vícios e mesmo assim posso estragar dinheiro. Uma namorada toda boa. Uma família que me apoia. Casa, carro, amigos. Tudo corria bem. Até ontem.
Ontem fui despedido, hoje perdi a minha namorada. A minha família critica-me e os meus amigos já não me acham digno de ser visto com eles. Mas o que é isto? O que aconteceu? Como é que o meu mundo caiu assim de um dia para o outro.

Estou deprimido como é óbvio. Não tenho como pagar as minha dividas, não tenho dinheiro para os prazeres mais simples, como um café depois de jantar. Aliás não sei até quando poderei jantar.
Ando deprimido, perdi peso, perdi a esperança, perdi os meus sonhos. Sou um recluso dos meus mórbidos pensamentos. Já ouço rumores sobre mim, que me fazem questionar se alguma vez alguém me conheceu. Até a minha própria família me virou as costas. Não tenho nada para lhes dar e eles adoram pedir, sempre pediram e eu sempre dei sem nada pedir em troca. Não pe
ço. Prefiro passar fome a pedir o que quer que seja. Não têm nada a temer nesse aspecto.

Mas como passei eu de menino bonito, o orgulho da família, a um drogado? O porque raio me acham um drogado, eu nunca toquei em droga na minha vida. Perdi peso, pois não tenho apetite, não durmo porque tenho problemas demais na minha cabeça. Estou desesperado e não tenho ninguém que me empreste um ombro, um abraço, um ouvido, uma palavra amiga. Ajudem-me, não quero nada de material, quero companhia para não me perder de vez.

Estou farto disto tudo. Farto de pessoas falsas, sinto-me usado, inútil quero desaparecer, mas sou ou consciente demais, ou cobarde demais para dar um tiro na cabeça.

Vou mesmo desaparecer. Preparo uma pequena mochila. Pego no pouco dinheiro que tenho. Entro no meu carro, encho o depósito e parto.


Para onde vou, não sei, vou andar até o carro parar e depois... veremos. Nada mais tem valor para mim. Nem eu próprio. Sigo sem rumo pelas estradas da vida em busca de algo, de me encontrar pelo caminho, ou de me perder de vez.


Não sei como vim aqui parar. Parece-me que adormeci ao volante e algo ou alguém me trouxe para este sítio. Acordei num daqueles típicos Motéis de fim de estrada. Dos que vemos nos filmes em que o gajo acorda sozinho num quarto escuro. Sento-me na cama, na qual dormi vestido e fumo um cigarro. A única diferença, entre a ficção e a realidade, é que eu dormi nu. Está um calor insuportável, e mesmo com as janelas abertas e as persianas fechadas, existe este bafo quente no ar que se torna doentio. Sinto-me doente, e não é só deste calor.

Puxo do cigarro e coço os tomates. Por mais que tente, não me consigo lembrar de como cheguei a este quarto. Quem me despiu? E onde raio está a minha roupa? Isto não faz sentido. Tenho o tabaco em cima da mesa junto com as chaves do carro e a minha carteira. E o dinheiro está cá todo!

Dirijo-me à casa-de-banho. Acendo a luz e tento não olhar-me. Lavo a cara. Pego na toalha com que me sequei e coloco-a à volta da cintura. Saio do quarto para ver onde estou e da varanda, vejo o meu carro de frente para a porta. Não vejo ninguém. E não há mais nada que me possa dar pistas sobre o local onde me encontro. O pinhal cerca o motel.

As minhas roupas não estão no quarto. Na casa-de-banho também não. Por ter visto apenas um carro no parque, e esse ser o meu, tomei a liberdade de descer até à recepção, só de toalha.

No elevador, foi impossível não me olhar no espelho. Vi-me com os olhos de quem desesperadamente tenta compreender, mas também vi os olhos de quem sabe. Virei-me de costas para o reflexo.

Na recepção, um velho gordo e careca, em tronco nu, disse-me que eu tinha chegado sozinho mas que esperava um amigo. Não sei do que fala, mas continuou, dizendo-me que esse amigo teria saído de madrugada, levando consigo um saco. Como não o viu de frente, não mo conseguiu descrever.

Deu-me a roupa que visto agora. Paguei-lhe a noite e saí. No carro, não encontrei nada de estranho. Nenhuma prova, nenhum sinal…

Fiz-me à estrada novamente. Perdi-me em pensamentos…

Ao mesmo tempo, tenho a calma de quem sabe o que se passa. Ou pelo menos, do que se passou.  O certo é que desde ontem, no carro, não tenho memória de nada. E se isto não me assusta, então é porque está tudo bem... ou assim o espero.



FIM

Por Crest & Ipsis Verbis