Andaram cerca de 15 minutos até que ela entrou num prédio na nova urbanização feita junto ao rio. Ele seguiu pela rua até ao parque de estacionamento mais à frente, parando junto a um Clio já com a tinta a cair e ferrugem a despontar onde esta falava. Tirou as chaves do bolso, abriu a porta e entrou para o lugar do condutor. Deixou-se estar quieto, fumando o cigarro que acabava de acender. O silêncio imperava dentro da viatura, ouvindo apenas o som do papel que queimava a cada aspiro do fumo e o som da expiração quando o libertava. Com um gesto rápido tirou o capuz que o cobria e recostou-se um pouco mais no banco. Gozava do silêncio que por ali reinava, sem pessoas, sem carros a passar. Mesmo a chuva miúda que continuava a cair não fazia barulho. Baixou o vidro um pouco e sentiu o frio bater-lhe na cara quase como uma palmada sem mão. Mandou a pirisca fora e ficou a ver o resto do cigarro absorver a água até se desfazer. Rodou a chave na ignição até o quadrante ficar com as luzes acesas e passou o limpa pára-brisas deixando os olhos seguirem o movimento acompanhado pelo som estridente da borracha que se esfrega de encontro ao vidro. Conseguia ver o prédio onde ela tinha entrado, sabia qual o seu andar, sabia até qual a sua janela.
Na sua mente o plano calculado era revisto. A entrada, o trabalho, a saída... A saída era sempre a mais importante. A ideia de ser mandado para um calabouço não o agradava, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha de alto a baixo.
Retirou o plástico que cobria o volante e caiu-lhe no regaço o envelope castanho que lhe tinha sido entregue. De dentro retirou a fotografia dela e os apontamentos que tinha tomado nota ao longo das semanas que a tinha vigiado. Releu-as num ápice e olhou novamente a fotografia. De sorriso na cara atravessou-lhe a mente que era um desperdício aqueles olhos não irem ver mais nada na vida. Era um sorriso sarcástico que de indulgência nada tinha. Tinha sido contratado para um serviço e era isso que ia fazer. Nada mais, nada menos.
Guardou tudo novamente no envelope, escondeu-o por baixo do polo, fechou o vidro e saiu do carro. A chuva continuava incessante, picando-o como dezenas de alfinetes, e caminhou pela beira do rio até debaixo da ponte. Tirou o envelope e ateou-lhe fogo, aproveitando a chama para acender mais um cigarro. Ficou a ver arder o papel sendo que a última coisa a desaparecer foram os olhos do seu contracto. Com o pé empurrou as cinzas até à água e viu-as dissolverem-se na torrente que aumentava de força a olhos vistos. Lançou o que restava do cigarro ao rio e avançou lentamente em direcção à entrada do prédio.
Deu a volta pelo empedrado irregular que levava à entrada das garagens, colocou o capuz novamente e as mãos nos bolsos. Sentia outra vez a lâmina nas mãos, fina, fria, dilacerante. O seu corpo começava a dar os sinais de que o gozo se aproximava, sentindo o acelerar do coração a cada passo que dava. A adrenalina fazia o efeito nos nervos dando-lhe o furor para o que tinha que fazer. Chegou à porta de entrada das traseira e olhou em volta para ter a certeza que ninguém o observava, baixou-se a preparou a gazua. Foi fácil abrir a porta, afinal já o tinha feito àquela porta uma boa dúzia de vezes, entrou e deixou apenas encostar sem fechar, deixando o tapete de entrada ligeiramente entalado. Se tudo fosse como nos outros dias, além do apartamento de destino, só um outro no último andar teria alguém. Subiu pelas escadas até ao quinto andar e chamou o elevador. A espera estava-o a deixar naquela inquietude frenética da eminente explosão quase orgásmica. Entra e desce ao terceiro. Com muito cuidado aproxima-se da porta do apartamento pretendido e baixa-se ao nível da fechadura. Introduz a segunda gazua e roda muito lentamente não fazendo qualquer barulho. Entra e encosta a porta, dirigindo-se à sala mesmo em frente.
Olha-a ao fundo, sentada de frente para ele.
- Estava à tua espera. - Disse-lhe ela.
P.S. - Este é último texto que publico aqui. A todos os que me leram o meu agradecimento. Se terá um fim esta história? Provavelmente... Vai-se construindo este texto conforme se vai construindo a vida.
Mais uma vez, os meus agradecimentos pelo cuidado, atenção e até carinho com que fui sendo lido. Um bem-haja a todos e até qualquer dia. Haveremos de nos encontrar numa dessas esquinas da vida.
Jorge estava sentado à secretária a comer uma maçã. A secretária impecavelmente arrumada, com os papéis todos no cesto dividido por categorias. Apesar de ser alvo de chacota por todos os colegas de brigada, não dispensava a gravata, uma diferente todos os dias, numa camisa impecavelmente passada e bem vincada, sempre fazendo conjunto com o fato cinza, igualmente bem vincado. Os sapatos andavam sempre a brilhar e até a correia de couro que segurava a arma ao peito brilhava, com os cuidados que ele lhe prestava. Era metódico e contrastante com o resto do pessoal, com mais gosto pelos jeans e pelas t-shirts ou polos coloridos. Ele destacava-se pelo que vestia e pelo que era. Todas as investigações eram levadas por critérios firmes, sempre seguindo as regras. A sua taxa de sucesso de resolução dos casos era prova que tinha um bom método. Apesar de saber que alguns colegas davam uns "amigáveis" safanões aos suspeitos de ilícitos, "para acordar os que estão a dormir" na palavra deles, ele não conseguia fazer uso dessas metodologias. Preferia vencer pelo cansaço. Era conhecida a sua maratona de 4 horas em que, numa sala de entrevista, tinha feito exactamente a mesma pergunta a um suspeito durante o tempo todo. Apenas uma pergunta, nada mais que isso.
Quando escolheu a Polícia Judiciária foi para as brigadas dos crimes económicos. Após meio ano ali, decidiu que não era bem aquela função que tinha sonhado dentro da polícia. Estudou e candidatou-se a uma vaga nos Crimes Violentos. Tenaz como sempre, conseguiu a transferência. Há 6 anos que estava na brigada e com bons resultados. Apreciado pelas chefias, eram-lhe entregues os casos mais delicados. A sua equipa era constituída por mais dois agentes que, devido às horas que passavam juntos, eram considerados quase da família. Sendo alvo de riso por parte deles, não deixava de tolerar por saber que não era mais que uma forma de se rirem um pouco no meio dos crimes que investigavam. Ao fim e ao cabo, as vezes até ele se ria de si próprio. Sabia aceitar uma crítica, embora não gostasse de ser alvo delas.
Embrulhou o resto da maçã num guardanapo de papel e lançou para o cesto do lixo. Levantou-se, dirigiu-se à casa de banho no corredor para lavar as mãos. Enquanto ali, olhou pela janela minúscula e viu a chuva miudinha a bater na vidraça. Limpou as mãos às toalhas de papel e olhou-se no espelho. Ajeitou o cabelo, o nó da gravata impecavelmente feito e saiu. Ao chegar de novo à secretária o telefone tocou. Sentou-se cuidadosamente, puxando um pouco das calças para não vincarem e atendeu o telefone.
- Jorge, vem ao meu gabinete.
- Já estou a ir Dr. - desligando de seguida.
Apanhou o casaco do bengaleiro à porta e saiu. Um telefonema do chefe queria dizer trabalho e do sério. Normalmente os processos chegavam à sua mão pelas chefias intermédias, mas quando o Inspector Chefe o chamava directamente era sarilho dos complicados. Subiu os lances das escadas em passo acelerado e correu o corredor até à porta da chefia. A secretária olhou para ele e sorriu.
- O Inspector Chefe espera-me.
Ela pegou no telefone e marcou a extensão devida.
- O inspector Rodrigues está aqui.
Depois da resposta desligou o telefone e encarou-o
- Pode entrar inspector.
Ele abriu a porta e entrou. A sala era três vezes maior que as salas das brigadas, alcatifada em vez dos tacos de madeira e decorada, ao contrário das paredes nuas das outras. Por trás da secretária, na parede, uma fotografia do Presidente da Republica de ar grave. O Inspector Chefe era um sujeito magro, com fama de duro, que tinha subido dentro da polícia por mérito próprio. Era estimado pelos restantes porque sabiam que era justo e nas alturas das promoções não se esquecia de quem verdadeiramente merecia. Era um homem astuto, sabia ler as pessoas e não era raro os comentários que para o chefe saber tudo bastava olhar para as pessoas. Jorge sabia que não era assim, mas quase.
- Senta-te Jorge.
Ele puxou uma cadeira que estava junto à secretária e sentou-se. Era bem mais confortável que a cadeira em que habitualmente se sentava à sua secretária.
- Temos caso? - perguntou, recostando-se muito direito para não enrugar o casaco.
- Temos e dos grandes.
O Inspector Chefe pegou numa pasta que estava à sua frente e passou-lha para as mãos. Era uma pasta grossa, cheia de documentos e fotografias. Jorge abriu-a. Os olhos abriram-se ao máximo enquanto folheava as fotografias do processo. Já tinha visto muita coisa, mais do que o comum dos homens alguma vez veria em toda a sua vida, mas nunca tinha visto algo assim. Depois de percorrer os olhos por todo o processo, contou pelo menos 5 vítimas de uma selvajaria descomunal. Fechou a pasta e olhou para o Inspector Chefe.
O céu escuro adivinhava chuva embora esta ainda não caísse. As pedras da calçada negra e branca brilhavam com água que escorria dos beirais das casas altas, velhas, com a tinta caindo aos pedaços. O andar tornava-se escorregadio pelo desgaste das pedras misturada com alguns resquícios de folhas trazidas pelo vento e com os papéis vazios das saquetas de açúcar caídos das mesas das esplanadas, na sua maioria vazias. Aqui e ali, alguns resistentes sentados nas cadeiras metálicas ainda húmidas, das chuvas da noite. A sua maioria estrangeiros de visita à cidade, com os seus livrinhos turísticos procurando os pontos que estes indicavam como sendo os melhores. As ruas estavam semi-vazias de pessoas que iam e vinham, passando por ele como se fosse invisível. Os seus passos cautelosos, pela calçada molhada e pelo seu próprio esforço de se manter insonoro, contribuía para essa sua invisibilidade. Parecia que o seu pólo cinza escuro se confundia com o céu, os seus olhos escondidos pelo carapuço puxado para a fronte, não permitiam que alguém reparasse no brilho estranho dos seus olhos. Era apenas mais um na baixa da cidade, percorrendo o caminho para um destino que ninguém se importava em conhecer.
A praça, com o seu cheiro característico de castanhas assadas misturado com os dejectos das pombas que por ali passavam. Em frente à Igreja de Santa Cruz, um casal de turistas tirava uma fotografia à fachada, milhentas vezes fotografada. Ele entrou na igreja deixando-se envolver pela penumbra fria da pedra. Caminhou até meio e sentou-se num banco qualquer. Ainda de capuz e com as mãos nos bolsos, quem olhasse para ele apenas notaria os lábios mexendo-se ao ritmo de uma oração. Poucas pessoas andavam por ali. Mais há frente, uma mulher de idade ajoelhada com a face entre as mãos fazia a mesma coisa que ele. As portas da entrada rangeram à entrada de alguém, seguindo dos passos de uma mulher, pelo som dos saltos, batendo na pedra fustigada dos séculos. Parou de orar e concentrou-se nos passos que se aproximavam da sua direita pelo corredor. Passou por ele sem lhe dar qualquer importância, parando cinco bancos mais à frente sentando-se. Concentrou-se novamente na oração que fazia sempre de sentido alerta. As mãos nos bolsos acariciavam a lâmina fria de um punhal. Ele gostava daquela sensação do frio e da maciez do aço na sua pele dos dedos. Sentia o corpo arrepiado pelo frio da nave, mas era uma sensação que lhe agradava, deixando-o mais desperto. Os nervos retesado estavam alerta para o seu mundo sombrio. Poucos lhe conheciam os hábitos, que ele tão sagazmente tentava esconder.
Não era dado a sentimentos de pena, amor ou ódio. Não se sentia só nunca. Sentia-se talhado para estudar as pessoas e aniquilar. Nada mais nada menos que arrancar da vida cada uma das pessoas que lhe era destinada. Trabalhava a soldo e isso não o repugnava. Era assim que sentia que tinha que ser, sentindo um prazer quase orgásmico cada vez que que tirava a vida a alguém. Gostava do que fazia e isso fazia-o bom na sua "arte". Os dedos acariciavam ainda o punhal, a sua arma preferida. Feito por ele próprio, tinha demorado anos para o aperfeiçoar. Não queria que nada o ligasse exteriormente às armas que usava e isso tinha feito com que ele próprio construísse aquela arma.
A mulher que tinha entrado depois dele levantou-se e desceu pelo corredor. Ele baixou mais os olhos, ficando a ver apenas as pedras do chão imediatamente à sua direita. Ela passou e ele pode apenas a parte final das pernas. Deixou-se estar até os gonzos da porta rangerem outra vez e ele deixar de ouvir os passos. Levantou-se e saiu, caminhando com o mesmo cuidado de não ser ouvido. Cá fora a chuva começava a cair miudinha fazendo as poucas pessoas que passavam começarem a abrir os chapéus de chuva ou apressarem o passo se os não tivessem. Os turistas fugiram a abrigar-se. Olhando para a esquerda, viu pelas costas a mulher que tinha estado na igreja à sua frente, caminhando em passos lentos com o chapéu de chuva aberto. Vestia-se de preto, num conjunto de saia casaco de corte clássico, com uns cabelos loiros lisos escorrendo pelos ombros. Ele seguiu-a.
A saudade é algo de quase inexplicável. Como conseguir explicar a palavra saudade? Como conseguir partir isto de forma compreensível? Quase impossível diria eu. Apesar de muitas vezes essa saudade se traduzir em manifestações físicas, através de um batimento cardíaco mais acelerado, ou um dor chorosa, ou o olhar perdido, definir o sentimento em si é tremendamente difícil. Poderão dizer os estimados leitores que será assim com todos os sentimentos. É um facto que é. Mas a saudade é tão particular, tão profunda, tão complexa que o é mais ainda. Porque se repararmos bem, a saudade não resulta de um sentimento, mas sim da junção de vários sentimentos. Passo a explicar, para ter saudades de alguém é necessário amar, no sentido mais lato do termo, necessário gostar, querer, desejar. E se mal conseguimos definir estes sentimentos, como então chegar à saudade? O facto é que as temos, dos amigos, dos familiares, seja de quem for que gostamos. Podemos sentir saudades de um aroma, de um sabor, de tanta e tanta coisa. E se podemos ter vários níveis de amor, de saudade só temos um. Não sentimos saudades de maneiras diferentes, ou sentimos ou não sentimos.
Quem já não teve saudades do cheiro do mar, ou de erva molhada, ou do perfume num corpo, ou de um gargalhada com um amigo, ou de ver a placa a dizer Portugal na estrada? E quem já não teve saudade de alguém ainda antes de sair fisicamente de junto dessa pessoa? Quem já não sentiu o aperto no peito só com a ideia que dentro de momentos os olhos já não descansam na figura?
Dizem alguns que a palavra saudade é nossa, portuguesa, que mais ninguém no mundo a tem. Talvez seja, não conheço todas as línguas do mundo para o dizer de forma segura. Talvez porque afinal, nós os que falamos português, porque devemos aqui incluir todos os que falam a nossa língua, sejamos um povo sentimentalão, que precisa de palavras para exprimir o que sentimos.
Mas volto ao que disse, apesar de não ser definível, o que é facto é que as sentimos.
E por isso um desafio. Façamos uma lista do que sentimos saudades na nossa existência, aquilo que o simples mencionar da palavra saudade nos faz recordar, e vamos matando essas saudades.
Para finalizar, recordo as palavras de Sérgio Godinho:
"Matar não gosto muito,
Mas saudades é diferente.
É como matar pulgas,
Alivia a gente."
Existir…
Afinal, o que é isso de existir?
Procuremos então os significados da existência. Havia um filósofo que brandia que existir era pensar, isto é, o facto de ser pensante definia a sua existência. Já o dicionário diz que existir é viver, subsistir, estar. A ligação lógica é: pensamos porque vivemos. Está correcto portanto. Mas pergunto eu; poderemos nós viver sem pensar? É que se for afirmativo, então o facto de pensar não nos conduz à existência.
Teixeira de Pascoaes vai mais longe ao dizer que “Existir não é pensar: é ser lembrado”.
Mas afinal o que é existir? Que significa, em que se traduz, que contexto lhe damos?
A vida conduz-nos por caminhos misteriosos, a existências mais ou menos notadas, mais ou menos lembradas, mais ou menos pensadas. Mas existências ou vidas? Em que ficamos? Seguimos pelo dicionário, livro sábio, ou pela sabedoria de quem os lê e interpreta?
Afinal, o que é uma palavra? Podemos usar e abusar do “existir”, dar-lhe todos os sentidos que quisermos, podemos “existir” neste mundo, podemos “existir” na vida de alguém, podemos “existir” em nós. Poderemos prender a palavra (nesta Prisão de Palvras, por exemplo) a um significado apenas, ou vamos dando significados conforme nos convém? Mas se lhe damos significados, não estaremos nós a pensar nesses ditos? E se pensamos será sinónimo de existir, como o filósofo afirmava? Será que existimos ao pensar sobre a palavra “existir”? Será que esta reflexão será memorável? E se assim for, ao ser memorável definiu a minha existência? E se não for, que dizer que não existi, pelo menos para os leitores destas palavras? Ou existi para muitos e não para tantos outros?
Será mais fácil aprisionar as palavras a um sentido? Dar-lhes um rumo constante? Será sim, sem dúvida. Mas ao fazermos, não estaremos a matar a existência das palavras?
Confusos?
Afinal o que é isso de confusão? Falta de ordem ou método como diz o dicionário ou o nome que inventámos para uma ordem que não compreendemos como dizia Henry Miller?
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