"É natal, é natal, é natal natal. É natal é natal é natal natal", canta a minha mulher dia e noite, noite e dia. A burra nem sabe a merda da letra. Sabendo do meu ódio pelo natal, massacra-me, tortura-me. Já lhe comprei a merda das calças de cabedal e o casaco estúpido de pele de antílope com mangas em malha, 600 Euros voaram assim em minutos. E ela? Ela não pára de cantar e decorar a casa com símbolos estúpidos, num completo desrespeito por mim. Ela não merece sequer umas luvas de pele de piça, quanto mais o que lhe comprei.
Observo as meias que ela coloca sobre a lareira, uma com o nome dela, uma com o meu nome e uma pequenina com o nome da cabrão do gato dela, que me mija todas as noites nos sapatos. Mentalmente canto “pró natal o meu presente eu quero que seja... ver este gato esfolado com as tripas de fora, pendurado sobre a lareira”, sim, eu sei que fugi ao ritmo da música. Acham que me importo?
Importo-me tanto como fazer uma mistela fatal qualquer e dar ao bichano de presente, para a sua ceia de Natal. E se ela fosse menos esperta, em vez do bacalhau e do perú, fazia um tareco assado no forno... o pior é que nem eu nem ela comemos carne. E peixe, só o bacalhau, nesta altura. Porque ela assim o quer...
Agora a meia com o nome do gato é que me dá cabo dos nervos. Sempre que olho para ela, apetece-me meter o raio do bicho lá dentro e atirá-lo para a lareira, feito tocha felina. Ahahah. Eu sei que ela nunca desconfiaria que teria sido eu. Para ela, eu adoro gatos. Brinco com o cabrão todos os dias enquanto ela está por perto, mas quando não está, fecho-o no corredor o dia todo, e sossegadamente, acomodo-me no sofá a ler um livro. De vez em quando olho para a porta de vidro da sala, e vejo-o. Sinto aqueles dois olhos a examinar cada movimento que faço...
Sempre que me levanto, ele levanta-se e dá voltas sobre si mesmo. Mas não mia. Comigo não pede nada (parece que afinal os gatos também se ensinam). E se por acaso se esquecer e miar, sem ela por perto, é chuto a mais sobre o pêlo.
Mas que se foda o gato, mais dia menos dia, vendo-o ao restaurante chinês aqui do lado, vendo não, dou-o, aliás pago para que fiquem com ele e façam um belo de um Chop Suey.
Acordo e vou para a cozinha, lá está a minha mulher com uma das minhas camisas e em cuecas. Ligo a máquina de café, abro o jornal e sento-me à mesa. Reparo numa noticia, “divórcios em Portugal disparam em 2008”, acredito, deve ser da crise que nos afecta a todos e o divórcio é sempre um bom investimento, principalmente para elas.
A minha mulher passa para um lado e para o outro, dou por mim a olhar para ela, sem sentir. Antigamente, só de a ver assim despida, deixava-me louco, ela não me largava eu não a largava, havia química, agora há... não sei, há.... companheirismo. Eu moro aqui, ela mora aqui e não nos evitamos mais porque partilhamos a mesma cama.
A aliança no meu dedo tem o nome dela, a dela tem o meu nome. Estamos marcados como propriedade um do outro, temos até o registo dessa propriedade no cartório. Já não há luta, desafio, há um desconfortável conforto, uma rotina maçadora. Já não a amo se é que alguma vez a amei e parece-me que a falta de sentimento é mutua.
“Querido?”
“Diz!”
“Eu já tenho o teu presente, mas não te perguntei, o que queres para o natal?”
“Se já compraste, não vale a pena eu dizer”
“Eu quero dar-te algo que precises, que queiras realmente”
“Queres mesmo? Mesmo que te custe?”
“Sim, quero”
“Este Natal, quero o divórcio”
"És tão parvo... Deves pensar que sou o Pai Natal. Vá diz lá..."
"Já disse! Quero o divórcio: Não te aguento mais. Não dá. Acabou!
"Mas tu estás parvo?! Que bicho te mordeu?"
Penso: Não me mordeu bicho nenhum porque eu não o deixo, mas respondo-lhe: "Já disse. Toma as devidas previdências. Quero sair de casa antes da consoada!"
"Mas tu estás a falar a sério? Que se passa... Olha que eu desato a chorar..."
"Não digo mais nada."
"Diz-me o que queres que eu faça, para ficares?"
"Para ficar? Tu queres mesmo que eu fique, seja como for?"
"Sim. Faço o que tu quiseres. Pinto o cabelo, rapo-a em forma de crista, faço-te brigadeiros todos os dias..."
"Tiras o gato de casa?"
"Hã?"
"O gato sai e eu fico!"
"O gato?"
"Sim, o cabrão do gato vai para a rua e eu fico em casa. Aceitas?"
"Mas, tu gostas tanto do Arlequim"
"Pensas tu! Detesto gatos e estou a começar a detestar pessoas que gostam deles..."
"Mas tu estás sempre a brincar com ele... estás a gozar comigo?"
"Brinco com ele quando estás a ver... Não estou nada gozar. É ele ou eu. Escolhe. Vou comprar tabaco. Volto já."
"Espera... mas eu gosto de ti..."
"E eu de ti... Pára com isso. Não comeces com merdas... . eu não consigo viver mais nesta situação. Eu não quero a porra do gato cá em casa. Vende-o. Dá-o a uma amiga tua. Mata-o... mas cá em casa, se ele ficar, saio eu. E se eu sair, é com o papel assinado por ti."
"Eu gosto tanto do Arlequim..."
"Pára de chorar. Aquilo é só um gato!"
"Mas ele faz-me companhia quando tu não estás."
"Se já tivéssemos um ou dois filhos, como eu quis, companhia não te faltava!"
"Então é isso?! A conversa do gato é por causa da conversa dos filhos?"
"Não. A conversa dos filhos é por causa da tua conversa sobre companhia... um gato não faz companhia. Nós é que lha fazemos."
"Não sabes o que dizes..."
"Dá-me um dos teus cigarros... (fumo) sei o que digo e digo-te mais... Aquela meia ali pendurada na lareira com o nome do gato é para eu me rir?"
"O que é que tem?!"
"Mas tu tens 10 anos ou envelheceste 50 e vives sozinha com 200 gatos?! Não te reconheço, pá..."
"O quê? Eu sempre fui assim. Sempre gostei de gatos e sempre os tive... "
"Oferecer presentes a um animal, é estúpido!"
"Não. Estúpido és tu! E insensível também. Quando trouxe o Arlequim para casa, não me disseste nada. Até te mostraste contente com o meu presente. E agora, 1 ano depois fazes-me isto?!"
"Arlequim, então é esse o nome do bicho?”
Ao perguntar-lhe novamente se me dá o divórcio ela nega-o. Acho que ela me irá sugar a conta bancária e até o sangue só para me deixar em paz, me deixar viver. Como é possível não sentir nada por alguém que senti tanto.
Acho que ela anda caída por um gajo, não sei se teve algo com ele, mas sinto que quer. Sei que ela sabe que não será uma relação de futuro, mas quer e ao querer está a deitar tudo a perder e perdeu-me.
A menina inocente que não consegue controlar os seus apetites. A menina fofinha que quer ser amada e que diz nunca se ter sentido tão amada como por mim, deixa-se ir por um pedaço de carne, sem sentimentos, sem compatibilidade intelectual.
Quero o divórcio que ela me diz não dar e por o querer vou lutar por ele.
Olho para o gato o gato olha para mim e faz um Bfffffffffffffff,
"Bfffffffffffff?, Bfffffffffffff filho da puta!"
Pego no gato pela cabeça e sigo para o WC.
"Onde vais com o meu menino?"
Não respondo.
Chego ao WC largo o gato na sanita e puxo o autoclismo, dizendo:
"Querida, a sanita está entupida"
"O que se passa?"
"Não sei, pergunta ao teu gato"
Ela corre para o WC e solta um grito histérico.
"A propósito, quero o divórcio AGORA!"
Ele recosta-se no sofá. Pega no comando e liga a tv...
- Estás a ouvir? (grita ela da casa-de-banho)
- Estou, mas muito mal. Se abrires a porta, oiço-te melhor.
O som da água a correr, indicava que ela iria tomar um banho, e como sempre, demoraria mais de 30 min.
Apesar da confusão que se tinha instalado naquele dia, ele sabia que o melhor era deixá-la sozinha.
Levantou-se de um impulso e dirigiu-se para o Wc. Abriu a porta, e já o vapor cobria toda a divisão.
- Sai!
- Não. Quero falar contigo agora.
- Já disse o que tinha a dizer. Deixa-me. Vai-te embora...
Ele abre a cortina e vê-a, nua e sentada na banheira, com a água a cair-lhe em cima.
- Não estás a chorar? (pergunta-lhe indignado)
- Não.
FIM