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Cartas  

Posted by M. Morstan in

Cartas. Vivo rodeada de cartas. Umas vêm, outras vão. Não mais que pedaços de papel com caracteres escritos a tinta. Às vezes têm apenas desenhos. Uma carta pode dizer tudo e pode dizer nada. Pode ter uma linha e conter toda uma vida. Pode ter sete páginas e estar recheada de trivialidades. Escrevo muito, eu. Envio. Recebo. Envio. Recebo. Leio, releio, torno a ler. As cartas são emoções. São desejos. São caprichos. São pecados. São armas. São crime. São pistas. Para o real e para o irreal. Para o consciente e para o inconsciente. Dizem que os grandes cérebros criminosos gostam de escrever cartas. Passar para o papel como é o pulsar de um coração acabado de arrancar a um peito jovem. Bate. Bate. Bate. E deixa de bater. A vida a esvair-se na mão. Na minha mão. Pena é estar sempre escuro, quando a vida desaparece. Mas a glória do dia tende a ofuscar a glória da morte. A morte de dia desvanece-se com o entardecer. A morte de noite brilha com a aurora. A descoberta de um corpo pela manhã, orvalhado, com os raios a reflectirem, é sublime... Cartas. Cartas. Cartas. Pedaços de mim que envio e que recebo. 

Bicicleta  

Posted by M. Morstan in

Encostada à parede de tijolo estava uma bicicleta. A minha segunda pista. Não como a minha, bicicleta que é vermelha, reluzente e bem cuidada. Antes ferrugenta, de guiador torto e alguns raios partidos. Não de desleixo, mas de uso. Muito uso. E muitos anos em cima, pareceu-me. Aproximei-me. Parei. Olhei-a. Cheirei o ar em volta. Férreo. Cheiro metálico, mas ao mesmo tempo doce. Passei a minha mão pelo guiador, desci pelo quadro, subi ao selim. Esburacado à esquerda e à direita, quase intacto ao meio. A minha mão continuou a deslizar pela bicicleta até à roda traseira. Rodei-a. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Perdi-me em pensamentos sobre o que esta bicicleta antiga já viu. Imaginei os caminhos que percorreu. Adivinhei quem se sentou em cima dela. Agora fui eu que me sentei nela. As duas pernas para o mesmo lado, como uma amazona montaria o seu garanhão. Estendi os braços e as minhas mãos rodearam os punhos. Apertei-os. Fechei os olhos. Senti a quietude da rua. Uma brisa ligeira revoltou-me os cabelos. Inspirei longamente. Abri os olhos e olhei para cima. Por entre os telhados, os raios de sol passavam filtrados pelo fumos das chaminés. Desci da bicicleta. Virei-me de costas. Afastei-me. Primeiro devagar, depois mais depressa. Corri. Sem olhar para trás uma única vez. Deixe a bicicleta encostada à parede de tijolo. Compreendi a minha segunda pista. E reli a carta.

Árvore  

Posted by M. Morstan in

A carta levou-me ali. À minha primeira pista. Não muito alta, mas de tronco grosso e copa larga, a árvore erguia-se no alto de uma colina verdejante. Parei a contemplá-la. Quantos anos teria, interroguei-me. Cem? Duzentos? Mil? Parecia antiga, de tão grandiosa que era. Aproximei-me. Dei uma volta ao tronco. Depois outra. E ainda outra. Parei. Descalcei-me. Estendi os braços, abracei a árvore e encostei a orelha esquerda à casca. Fechei os olhos e respirei fundo. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Deixei de me sentir e passei a senti-la. A árvore é um ser vivo. A árvore tem um coração. Não um coração como o meu, mas um coração que pulsa. E esta árvore tinha um pulsar vibrante. Encostada à árvore, consegui sentir o seu ritmo vital. A certa altura comecei a sentir o pulsar da Terra, por baixo dos meus pés nús. O meu coração desacelerou até ao compasso do vibrar da árvore e do pulsar da Terra. Em sincronia. Deixei-me ficar assim durante uns momentos. Eu, a árvore e a Terra tornámo-nos num único ser. Em sintonia. O tempo à nossa volta parou. O espaço à nossa volta desapareceu. Só nós as três. Eu, a árvore e a Terra. Abri os olhos e ainda abraçada à árvore olhei para cima. Por entre as diferentes tonalidades de verde das folhas, os raios de Sol passavam, filtrados. Uma luz quente aqueceu-me a cara e a alma. Virei-me de costas. Afastei-me da árvore. Primeiro devagar, depois mais depressa. Corri. Sem olhar para trás uma única vez. Deixei a árvore no alto da colina. Compreendi a minha primeira pista. E reli a carta.