Era uma vez, uma merda de vida, ou seja, a puta da minha vida.
Mas que raio faço eu aqui? Como é que cheguei aqui? Um canudo na gaveta, resultado de 17 anos de estudo que afinal não me foi necessário. Andei a estudar só por desporto. Um bom emprego que me paga as dividas os vícios e mesmo assim posso estragar dinheiro. Uma namorada toda boa. Uma família que me apoia. Casa, carro, amigos. Tudo corria bem. Até ontem.
Ontem fui despedido, hoje perdi a minha namorada. A minha família critica-me e os meus amigos já não me acham digno de ser visto com eles. Mas o que é isto? O que aconteceu? Como é que o meu mundo caiu assim de um dia para o outro.
Estou deprimido como é óbvio. Não tenho como pagar as minha dividas, não tenho dinheiro para os prazeres mais simples, como um café depois de jantar. Aliás não sei até quando poderei jantar.
Ando deprimido, perdi peso, perdi a esperança, perdi os meus sonhos. Sou um recluso dos meus mórbidos pensamentos. Já ouço rumores sobre mim, que me fazem questionar se alguma vez alguém me conheceu. Até a minha própria família me virou as costas. Não tenho nada para lhes dar e eles adoram pedir, sempre pediram e eu sempre dei sem nada pedir em troca. Não peço. Prefiro passar fome a pedir o que quer que seja. Não têm nada a temer nesse aspecto.
Mas como passei eu de menino bonito, o orgulho da família, a um drogado? O porque raio me acham um drogado, eu nunca toquei em droga na minha vida. Perdi peso, pois não tenho apetite, não durmo porque tenho problemas demais na minha cabeça. Estou desesperado e não tenho ninguém que me empreste um ombro, um abraço, um ouvido, uma palavra amiga. Ajudem-me, não quero nada de material, quero companhia para não me perder de vez.
Estou farto disto tudo. Farto de pessoas falsas, sinto-me usado, inútil quero desaparecer, mas sou ou consciente demais, ou cobarde demais para dar um tiro na cabeça.
Vou mesmo desaparecer. Preparo uma pequena mochila. Pego no pouco dinheiro que tenho. Entro no meu carro, encho o depósito e parto.
Para onde vou, não sei, vou andar até o carro parar e depois... veremos. Nada mais tem valor para mim. Nem eu próprio. Sigo sem rumo pelas estradas da vida em busca de algo, de me encontrar pelo caminho, ou de me perder de vez.
Não sei como vim aqui parar. Parece-me que adormeci ao volante e algo ou alguém me trouxe para este sítio. Acordei num daqueles típicos Motéis de fim de estrada. Dos que vemos nos filmes em que o gajo acorda sozinho num quarto escuro. Sento-me na cama, na qual dormi vestido e fumo um cigarro. A única diferença, entre a ficção e a realidade, é que eu dormi nu. Está um calor insuportável, e mesmo com as janelas abertas e as persianas fechadas, existe este bafo quente no ar que se torna doentio. Sinto-me doente, e não é só deste calor.
Puxo do cigarro e coço os tomates. Por mais que tente, não me consigo lembrar de como cheguei a este quarto. Quem me despiu? E onde raio está a minha roupa? Isto não faz sentido. Tenho o tabaco em cima da mesa junto com as chaves do carro e a minha carteira. E o dinheiro está cá todo!
Dirijo-me à casa-de-banho. Acendo a luz e tento não olhar-me. Lavo a cara. Pego na toalha com que me sequei e coloco-a à volta da cintura. Saio do quarto para ver onde estou e da varanda, vejo o meu carro de frente para a porta. Não vejo ninguém. E não há mais nada que me possa dar pistas sobre o local onde me encontro. O pinhal cerca o motel.
As minhas roupas não estão no quarto. Na casa-de-banho também não. Por ter visto apenas um carro no parque, e esse ser o meu, tomei a liberdade de descer até à recepção, só de toalha.
No elevador, foi impossível não me olhar no espelho. Vi-me com os olhos de quem desesperadamente tenta compreender, mas também vi os olhos de quem sabe. Virei-me de costas para o reflexo.
Na recepção, um velho gordo e careca, em tronco nu, disse-me que eu tinha chegado sozinho mas que esperava um amigo. Não sei do que fala, mas continuou, dizendo-me que esse amigo teria saído de madrugada, levando consigo um saco. Como não o viu de frente, não mo conseguiu descrever.
Deu-me a roupa que visto agora. Paguei-lhe a noite e saí. No carro, não encontrei nada de estranho. Nenhuma prova, nenhum sinal…
Fiz-me à estrada novamente. Perdi-me em pensamentos…
Ao mesmo tempo, tenho a calma de quem sabe o que se passa. Ou pelo menos, do que se passou. O certo é que desde ontem, no carro, não tenho memória de nada. E se isto não me assusta, então é porque está tudo bem... ou assim o espero.
FIM
Por Crest & Ipsis Verbis