Preciso sofrer, perdão, escrever criativamente. Perdão, preciso sofrer para escrever e chegar lá. Preciso saber onde quero chegar, perdão, preciso saber como escrever. Preciso loucura, perdão, não, eu preciso loucura. Preciso sofrer, perdão, não, eu preciso sofrer. Preciso dos demónios, perdão, nao, eu preciso dos demónios. Preciso sair, perdão. Preciso sair. Preciso rebentar, perdão. Preciso rebentar. Preciso energia, perdão preciso energia.
Preciso parar, perdão. Preciso parar de pedir perdão.
A culpa não foi minha.
A
não amar. demasiado óbvio. adeus. alegria. é banal. angústia. é por aqui, se faz favor. aconchegar. pela última vez. abraçar. sentir o cheiro. adormecer. para sonhar com o dia. acordar. para voltar a dormir. sono eterno.
B
que merda é esta?! baixar defesas. conhecer o canto. beber. tenho sede de não estar aqui. barulho. demais. calem-se por favor. aBatimento. eu não consigo mais.
A
outra vez. não ser amado. dolorosamente banal. chorAr. baixinho .alterar. rotina. acordar. não querer. adormecer. sono eterno. again.
N
nada. vazio. lembrança. nenhuma. eco.
D
o pior. dor. todos os dias. dor de ausência. dor de saudades. dor dos gritos alheios. sofrimento. dor. dor como agulhas na carne.
O
oportunidade. escapar. aventura. medo. odores. meus. alheios. iguais.
N
o mesmo. igual. nada. nada. nada. nada. vazio. eco. não gravidade no ser. eco. vazio. nada. nada. nada.
A
amor. não acredito. amor. não sinto. anestesia. morrer. por dentro. finalmente. abandono.
R
recuar. não nascer. não sentir. não sofrer.
- Podes-me ler? Por favor?
- Claro.
"É como ter uma corda a sufocar-me o pescoço. E não poder respirar. Simplesmente isto.
E é o irritar-me com o estado das coisas, e não poder fazer nada. No sentido de que todo o ser humano tem direito a uma vida digna, e para a termos temos de ser escravos. A supra ironia, pois isso de vida digna não tem nada.
Se diz na declaração universal dos direitos humanos que todos temos direito a uma casa e condições para uma vida digna, porque é que temos de nos esfarrapar para que isso aconteça? Afinal essa declaração serve para quê? Manifestações de activistas?
O mundo tornou-se, mas desde há séculos num sitio insuportável de viver, ainda que paradoxalmente fascinante.
Ninguém pensa em mudar as coisas. E mea culpa nisto, pois precisei de ficar sem dinheiro, e passar fome para olhar por fora. Antes olhava mas pensava um pouco menos. Pois sabia que não podia fazer muito e a melhor forma era tentar fazer alguma coisa a partir de dentro. Fiz muita merda pelo caminho. Porque muita gente se dedica a foder a vida de outros. E dedicaram-se a destruir a minha. Simples. Criaram-me medos, destruiram-me a vida deixando-me pesadelos eternos, e desconfianças infinitas que transformaram a minha vida numa eterna fuga. Dentro disto tudo sempre tentei fazer o melhor com os outros. E sei, que mudei a vida a algumas pessoas. Que as fiz mais felizes. Que ao ter gestos pequenos fui mudando ainda que por instantes a vida dessas pessoas. Mas ainda assim não resultou. O mundo não se tornou num lugar melhor, bastante pelo contrário. Cada vez mais megalónamos nos tentam - e conseguem - controlar. Cada vez mais as pessoas vão de encontro ao desespero enquanto um punhado de animais decide o seu (meu) destino. Que eu escrevi dentro de mim. Que teria um caminho e uma direcção mas que estes animais decidiram - talvez muito antes de eu nascer - que iria ter a direcção contrária. E por isso o meu caminho está no limiar da minha humanidade. Ou da minha animalidade. Pois tanto uma como outra ficam comprometidas quando a questão é de viver ou morrer. É um ciclo gigante que estes animais controlam. E algo tem de parar o fluxo deste controlo. Acordar as mentes.
É por isso que eu renuncio à minha vida. Porque renuncio a uma vida imposta por outrem, privada de dignidade, e condições básicas enquanto um Vaticano tem torneiras de ouro na casa de banho.
E espero que esta nota final faça parar o fluxo. Nem precisa ser em todo o mundo, mas na cidade onde decido fazer a minha escolha final. Espero que esta escolha contribua para que as pessoas possam fazer as suas escolhas vivendo. Lutando por aquilo que é seu por direito.
E devolvendo ao pó aqueles que pensam ser deuses. "
1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4, 1, 2, 3, 4
Preparo-me. Há muito tempo que não fazia isto, é daquelas coisas que nunca gostei de fazer. Mas ele insiste que eu vá, para que eu veja o outro lado, o outro objectivo de o fazer, as outras sensações que eu nunca senti.
Acho uma certa piada, pois nunca lhe contei porque é que não gosto. Apenas disse "Detesto" e ele decidido disse "Vem comigo. Vais ver que é muito diferente daquilo que detestas." Eu fiquei sem entender, há coisas que se gosta ou não se gosta e eu detesto. Ao pensar nisto encolho os ombros, e sento-me à espera que ele bata à porta.
Não tenho que esperar muito, ele é sempre pontual. Sinto um misto de nervosismo pela sua chegada, e alegria por ver o seu rosto. Que me é sempre agradável. Mas acabo a duvidar que ele consiga fazer-me ver, ou sentir a coisa de forma diferente da que eu sinto. Além do mais ele não sabe porque é que eu não gosto, aliás, detesto, assim tanto. Não sabe que foi porque mo obrigaram a fazer, que me fustigaram para o fazer, e me privaram de sentir isto de uma forma normal, de me dar a hipótese de decidir que gosto ou não. Assim apenas me restou uma hipótese. Detestar.
Começamos, eu queria levar música, e ele diz que não, a música estraga a experiência, tem de ser sem música, temos de sentir os passos as coisas à volta, as pessoas a cumprimentar-nos, a sorrir, como lhe acontece sempre que o vêem a ele. Comigo não sei se sorririam, se apenas me ignorariam, eu não me misturo assim com as coisas as pessoas.
Fazemos o caminho em silêncio e surpreendentemente eu sinto-me bem. Gosto de ver como as pessoas nos cumprimentam, e sorrio-lhes com ele, ao mesmo tempo, no mesmo compasso do sorrir. Sinto as folhas outonais, secas, a estalar debaixo dos meus pés por menos de segundos, o tempo que me demoro a pisá-las, e o som do vento a fazer dançar as folhas que ainda se sustêm nas árvores.
E gosto. Pela primeira vez sinto prazer nisto, depois de tantos anos a tentar e sempre a detestar. Pergunto-me se o conseguiria fazer sozinha, e prometo-me que vou tentar. Começo a ficar cansada, e noto que ele também, mas a sua persistência em continuar, faz-me querer segui-lo sem reclamar. Ele vale a pena isto. O esforço de ficar ao seu lado. Chegamos a um riacho, depois de passar pela cidade, pela estrada, pelo bosque, e ele diz, é aqui. E senta-se. Eu sento-me com ele, convidada pelo gesto silencioso, e fico à espera. A ouvir a água. E é apenas isso que ficamos a fazer, enquanto os corações retomam um ritmo normal, enquanto passamos do calor ao friozinho que nos faz querer aquecer num abraço.
Hoje vou tentar. Sozinha. Pelo mesmo caminho. E não sei se vai ser igual pois ele não está. Mas sei que onde quer que esteja, poderei sentir o seu coração bater com o meu, através das árvores, do vento das folhas, da água a correr no riacho. E foi este o tesouro que ele me deu.
Então Tempo, como te corre a vida? Muito trabalho? Quando tiras férias oh Tempo?
[Quanto tempo o tempo tem.]
Oh Tempo, tu tens tempo? E quanto? Precisava de um favorzinho teu, sabes,aqui a coisa anda negra, as engrenagens quase já não funcionam, enfim, toda uma desgraça!
A vida corre sempre igual, Tempo, e a tua? Suponho que seja o mesmo. Férias? Eu nunca tiro férias. Tu tiras férias, Tempo? Como é que consegues essa proeza?
Eu tenho tempo. Todo o tempo do mundo. Eu sou o Tempo, mas que raio de pergunta é essa? Um favor? Epah, não sei, tudo depende da forma como sou preenchido... E tu sabes que isso não depende de mim. Sabes não sabes?
Mas agora pensando bem, Tempo, porque me fazes estas perguntas? Se eu sou tu e tu és eu? Perguntas-me se tenho tempo para te fazer um favorzinho.E tu? Tens tempo para me dizer que favor é esse? É que bem vistas as coisas Tempo, tu és eu e eu sou tu...
"Porra, vai-te embora! Já chega! Se não queres estar aqui, se não me queres ouvir a chorar, vai-te embora! Eu sei que tu queres ir embora, mas porque não vais já? Tens pena de mim? Tens pena deste corpo? Tens pena destas cicatrizes? Elas não se vão embora por ti! E tu não me vais impedir de nada! Chega de estares aqui só porque eu preciso, porque estupidamente tu tens medo que eu me corte! Mas afinal qual é o teu problema?!!!"
Ela está nua à minha frente. A chorar, com o seu longo cabelo negro colado ao seu rosto perfeito. E eu consigo olhar para ela. Para aquele corpo, salpicado de cicatrizes. E realmente eu quero ir embora, como ela diz. Mas não consigo. É demasiado paralisante ver alguém assim, quanto mais ela.
Eu não sabia destas cicatrizes. Descobri há muito pouco tempo. E não sei, não faço ideia porque o faz. Mas sim, eu quero ir-me embora. Ainda assim não consigo mover um pé. Agora a única coisa que nos separa é o seu grito de silêncio, que eu consigo ouvir até ao âmago da minha alma. E eu acabo por querer dar um passo em direcção a ela, mas o seu grito mudo impede-me. Enche a sala.
E ela fala uma vez mais.
"Agora, o teu único caminho é voltar atrás. Este monstro não é partilhável!"
Eu não entendo, mas acho que na cabeça dela está um monstro e não uma mulher. E volto a tentar dar um passo. E volto a não conseguir.
Sem ter qualquer outra opção... Volto atrás.
O Grito mudo estilhaça os vidros da sala, que se espetam nas minhas costas.
É engraçado como te adivinho o suor. A tentativa de te conteres. A vontade exala-te pelos poros, enche o ar e alimenta a minha. Não resistas, cabrão, sabes que estou à espera que me arrastes, que me domines, que me fodas até não aguentar mais. Esse volume nas calças diz-me que não vais demorar muito mais. E tenho razão. Por trás de mim sinto um forte puxão no cabelo que me faz mover a cabeça para trás. E sinto calor. Não demores. Mas tu hesitas. Como se algo em ti tivesse medo. Não hesites. E decides-te e puxas-me e eu deixo-me ir atrás. Dói ser puxada pelos cabelos, dói ir pela casa, até onde tu queres que eu vá mas tu sabes que é esta dor que me deixa louca de tesão, que me incha, que me molha que me faz tocar o êxtase. És bruto, levantas-me e encostas-me contra a parede. Chupas-me os seios com uma violência que quase me faz chorar mas eu gosto, eu gosto e tu sabes. E continuas. E não tens dó. Sabes que o teu domínio vai durar pouco. E deixo-te gozar desse poder para logo retomar o meu lugar de Puta, da tua Puta preferida, e atiro-te contra o chão. Sinto que queres logo tocar o êxtase mas sei que não to quero dar. Brinco contigo, faço doer, provoco-te sensações que tu jamais imaginaste que podias sentir. Até que não aguentas mais. E me atiras ao chão. E eu deixo porque eu não aguento mais. E fodes-me, até já não restar mais nada, mas voltas a foder-me e a foder-me e és impiedoso tal como eu o sou contigo. E a luta dura até não haver mais forças, e sugamo-nos até não aguentar mais, no acto mais egoísta que podemos conseguir. E eu acabo a pensar. Porque é que as pessoas pensam que o sexo é amor ou uma expressão de amor e não o que realmente é? A expressão máxima do egoísmo...
Puta que pariu o amor!
"Acordo num campo de trigo. Não me lembro de ter ali adormecido, pensava que tinha adormecido na minha cama, no meio de uma grande cidade, mas no entanto acordo um campo de trigo no meio de lado nenhum. Aquilo é, de facto, diferente. Levanto-me estranhando a paisagem dourada, o chão impressionantemente macio. E tenho fome. Após um longo suspiro estico as pernas e decido começar a andar. Tenho fome, e não sei o que estou ali a fazer, nem como ali fui parar.
Lembro-me de que tenho de ir trabalhar, que deveria ter em conta as horas, mas estar ali sabe-me bem, e essa realidade parece-me longe. Por falar em longe, estreito a vista, e acabo por perceber uma casa. Comida, penso. E acelero o passo.
O campo de trigo dá lugar a um campo de girassóis. E o campo de girassóis guarda uma casa que me espera. Olho o céu. Um laranja dourado de amanhecer. Sorrio. E começo a correr para encurtar a distância. "Terei morrido e chegado ao céu?" Não importa. Sorrio à ideia de tomar o pequeno almoço naquele lugar. E ao fundo vejo aquilo que me parece ser o animal dos meus sonhos. Uma pantera negra à minha espera. Aquele ar faz-me bem, aquelas flores a adorar o sol fazem-me por momentos feliz. E aquela pantera negra não me deixa esquecer o que eu realmente sou. Tudo parece perfeito, num equilíbrio que eu jamais pensei existir, ou mesmo desejar. Porque nunca desejei o equilíbrio, mas agora não faz mal. A pantera está ali. É eu, negra, em toda a minha essência. Extasiada pela visão corro para a casa, que me parece cada vez mais irreal. Amarela com tons de verde, como se fosse uma extensão do campo de girassóis. A pantera aproxima-se de mim, um caminhar suave e forte ao mesmo tempo, o negro a reluzir ao sol, os seus olhos profundamente verdes. Sem medo toco-lhe, sem medo, acaricio-a e o animal deixa-se acariciar. Por pouco tempo. Nunca é preciso ser demais. "E há quem pense que quanto mais abraça mais gosta. Detesto abraços...".
A pantera não vai muito longe. Está ligada a mim. Sempre a mim. E entro na casa e vejo o tão aguardado pequeno almoço. Pão com manteiga, pão com doce, pão com marmelada, é só escolher. Leite, sumo de laranja, chá, café, é só escolher. Morangos, mangas, uvas, bananas, cerejas, é só escolher. E sento-me. E escolho. A cereja."
Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi!
Merda do despertador!
Gosto do meu namorado, que me está a beijar o pescoço, e acho que não era capaz de o trair. Ele não repara que o gajo está a olhar para mim. Pelo menos não é um daqueles monhés que se fixam no meu rosto como se nunca tivessem visto uma mulher. Parece europeu, quem sabe português ou espanhol. Norueguês não é com certeza. Eu ainda tento desviar o olhar, mas ele está sempre lá. E olhá-lo directamente, também não resulta. Ele simplesmente não desvia o olhar. E é um dos olhares mais perturbadores que já vi... É como se conseguisse congelar tudo à volta dele só pela presença. Não gosto disto, não gosto. Será que se eu me levantar e lhe der um estalo ele acorda para a vida, e deixa de olhar para mim, para nós? Deus queira que saia na próxima estação de metro...
Agora que já foi tudo dormir, eu penso ir também. Apago tudo, deixando a casa numa doce escuridão, e vou para o meu quarto. Espero que o sono se apodere logo de mim. Pode ser à bruta ou não, o que eu quero é dormir. Dou uma volta, dou duas, dou três. Penso naquele texto que tenho de escrever. Penso no que quero realmente escrever. O sono não vem. Acendo a luz do quarto, pego no bloco de notas, e na caneta. Começo a escrever, mas chegada a um ponto leio o que escrevi e sinto que falta uma coisa. Sentimento. Sinto apatia a escrever uma coisa que me devia causar lágrimas, porque afinal estou a escrever sobre mim. É uma apatia que esconde lágrimas e dor. Rasgo as páginas porque já não fazem sentido. Não consigo dormir. Penso em vestir-me e ir até ao mar, a meio da noite, mas fico-me pelo pensamento. Penso que quero morrer. Saio do quarto, vou para a sala onde o frio e a escuridão imperam. Na janela vislumbro o mar, mais perto a ponte. Na mesa os comprimidos e a garrafa de vodka. E tudo me chama. Eu fico a pensar nas possibilidades, fico a concretizar tudo na minha mente, mas apenas na minha mente porque no fundo até sei que não é o que quero. Sou capaz, mas não é por aí.
A ponte é de todas a solução menos elegante. Menos romântica. Seria a que eu nunca tomaria. Gosto do mar, gosto de sentir que o mar tomaria conta de mim, mas aqui sempre existe a hipótese de tubarões. A minha forma favorita de morrer, é como a das estrelas. As que brilham mas não aguentam esse brilho e acabam por se apagar. A garrafa de vodka e os comprimidos em cima da mesa chamam por mim, tal como chama a ponte, tal como chama o mar, porque eles não me chamam, eles estão simplesmente ali e é a Noite quem me chama. Deito-me no sofá, e continuo a imaginar o processo. Gosto de imaginar como seria, não morrer, mas o depois. Encontrarem o corpo. Chocarem-se. Quem sabe até chorarem por mim. Imagino a família a receber a noticia e a chorar. E é nesta parte que fantasio mais. Imagino o funeral, as palavras falsas que diriam de mim, os falsos sentimentos. E sei que também é por isso que não quero. Porque não quero as lágrimas falsas, porque não quero que digam depois da morte o que nunca sentiram em vida, só para parecer bem.
O sofá não resulta. 5 da manha, marca o relógio. Tarde, muito tarde. Para quem tem de se levantar daqui a 3 horas e passar 5 em viagem seguidas mais não sei quantas em reunião. Decido que é tempo de ir dormir. Mesmo que não queira. Num último relance à garrafa e aos comprimidos, constato que nunca estiveram lá. Abro a porta do quarto, deito-me na cama, e continuo a imaginar. Até de manhã.
Fecho a porta. Com estrondo. Porque me apetece. E sei que não vem atrás para dizer "Não vás!". Até porque desta vez nem sabe onde vou. Nem eu. Mas, para o caso de não voltar, fecho a porta com estrondo. Para que nunca se esqueça de mim.
Está a chover. E eu não sei por onde vou. Sei que estou a ir. Como se alguém puxasse os cordelinhos das minhas pernas e as fizesse mover ao som da sua vontade. Eu deixo. Quero ser levada. Não quero ir, se não ser levada. A chuva está a começar a empapar-me a roupa, mas isso deixa-me indiferente. Quem sabe devesse ir tirando a roupa pedaço a pedaço. Porque empapada, torna-se apenas uma extensão da chuva. Nada mais.
E as peças de roupa vão voando para os lados, como se obedecessem assim, prontamente a apenas um pensamento. E eu vou continuando a ser levada. Sem norte, sem sul, sem direcção. As pernas continuam a andar, sempre movidas por alguma força alheia. E eu vou sendo levada sem saber onde nem porque. Parece que já andei horas. Não estou cansada, não tenho fome, nem frio. E tudo parece acontecer à velocidade do meu pensamento. Mas por agora a única coisa que pensei, foi mesmo que a roupa já não fazia sentido, empapada. E a roupa desapareceu.
Penso no mar, e ali está o mar. Calmo tal e qual como eu pensei nele. E continuo a andar com o mar à minha volta. E tudo à minha volta é mar. Estranhamente mar. Já não há terra, já não há pessoas, apenas o mar e uns quantos sóis. Porque eu pensei no por do sol. Pensei no princepezinho, que gostava muito do por do sol. E que via muitos. E ali estão sóis a porem-se para mim. A pintar o mar com as cores douradas de um fim de tarde de verão. E Arco-íris porque a chuva não deixa de cair.
Continuo a andar. Continuo a ser levada. Sinto as ervas roçarem nas minhas pernas, mas mal sinto os meus pés no chão. Sinto a brisa do vasto campo de flores silvestres, o aroma do amanhecer. E continuo a caminhar. Sem frio, sem fome, sem cansaço. Sem norte, sem sul, sem direcção.
Estou ao teu lado, parada, sentada. Continuo a ser levada. Sinto o teu olhar, e sinto uma paz que é impossível vir de ti. E sinto o meu pensamento, logo a minha voz perguntar...
Porquê?
E vejo-te de pistola na mão, a olhar para o meu corpo sangrento, sem qualquer expressão.
E o Vazio da noite toma conta de mim.
"Consigo prever quando ele chega. Mesmo antes de ele se levantar da sua cama, consigo antever os seus movimentos. Esta noite não dormi. Ando com insónias. Deve ser do calor. Eu acho que tem a ver com o facto de eu dormir num colchão no chão. Acho que sinto as vibrações, o despertar do seu corpo, aquele momento antes de ele acordar. Nos dias normais, quando durmo durante a noite, é neste momento que acordo. Incrivelmente, não acordo quando ela vai, meia hora antes trabalhar. Sim, porque eu não sei porquê, ele demora meia hora a levantar-se e a vir. E eu espero, expectante, essa meia hora. Já sei em que momento ele vai abrir a porta, em que momento eu o vou ver, aquela figura pequena, mais pequena que eu, entrar por ali dentro e deitar-se ao meu lado. É verdade. Ele é mais pequeno que eu. Mede 1.56 contra o meu 1.60. E 1.60 agora, porque ainda estou a crescer. Não sei se é de não ter dormido toda a noite, mas vejo que se eu quisesse podia matá-lo. Não?
Volto-me na cama. Ele vai acordar dentro de meia hora. Ela acabou de sair. Ainda tenho um bocadinho de tempo. Parece que estou a fazer ronha antes do despertador tocar, com aquela suave e doce sensação de que ainda falta um bocadinho. Mas afinal é pior. Sim, ainda falta um bocadinho, mas para entrar num pesadelo. Quem sabe para ser um pouco desnudada, quem sabe para sentir coisas onde não as deveria sentir. Literalmente. Estou a perguntar-me a mim mesma como estou a conseguir viver com isto. Eu sei que alguma coisa está errada aqui, eu sei que as peças não estão certas, mas não consigo ver onde nem porquê. Se eu lhe contasse, a ela, que diria? Não ela, que sai todas as manhas para trabalhar e me deixa à sua mercê, mas ela, a amiga da escola, que conversa longamente comigo sobre as suas descobertas sexuais com o namorado.
Nessas conversas, eu digo, silenciosamente, para mim, que sei o significado de algumas das coisas que ela me conta. Mas secretamente. Ninguém, mas mesmo ninguém sabe. Nunca uma única palavra foi proferida por mim. Ela, segundo ele, sabe. Ele conta tudo à sua esposa, que por acaso é a minha mãe e se ela, a mãe não faz nada, como é que pode estar errado? Não pode. Mas eu não deixo de me sentir desconfortável. Se calhar a culpa é minha.
Passos. A meia hora passou. Eu não passo a meia hora entre o sonho e o pesadelo a pensar, mas eu hoje realmente não consegui dormir. Ainda foi à casa de banho, mas já está a caminho. Tudo acontece rápido, e previsivelmente, mas ao mesmo tempo parece que está activado o slow motion da cena. Assim que ouço a porta abrir, fecho os olhos, e finjo que estou a dormir. É a minha técnica para que ele chegue, deite e durma também. E assim não é um pesadelo. Apenas um sonho muito mau. A roupa interior ficou para trás. A dele, porque a minha está colada ao meu corpo, a tentar proteger-me. Um calafrio percorre-me a espinha. Ele levanta os cobertores e faz frio. E eu encolho-me, antevendo tudo o que vai acontecer. Parece que no meu corpo tudo se prepara, quase que sinto as reacções químicas da coisa, para receber aquilo. Sinto uma mão a passear sobre o meu peito, e um corpo cavernoso por detrás. E fico quieta, petrificada.
Resulta. Ele adormeceu e ainda que eu não me possa mexer, pelo menos mais não há.
Fico, agora sim meia hora à espera que o despertador toque. Mas ao contrário da meia hora de antes... Agora anseio por libertar-me desta prisão, e deste abraço que todos os dias me esmaga um bocadinho mais."
Ao ver aqueles pequenos e mágicos seres correrem-lhe para as pernas, e abraçá-la, sentiu o mundo suspenso. Se a Vida fosse aqueles pequenos Magos, ela ficaria. Mas fez o maior esforço do mundo para que este abraço fosse a única coisa que viesse alguma vez a recordar. Ao olhar para cima, para o mundo em que estava inserida, estavam uns olhos interrogantes. "Estás bem? Tens a certeza que é isto? Que estás feliz?" "Sim. Absolutamente sim!", respondeu, fazendo um sorriso desmesuradamente grande, em comparação à pequenez da sua alma.
Saiu com a Alma em sangue. Não se importava. A alma sangrava, mas ela já não sentia.
MENTIRA!
Alguém, no meio de abraços, falsas lágrimas e falsos sorrisos lhe perguntou se não se despediria dela. "Não". Era a ela quem mais queria esquecer. Tinha-a matado, naquele dia, há anos atrás no enterro da sua amada avó. Tinha-a apunhalado tantas vezes quantas ela a fez chorar, ou golpear-se a si mesma.E agora não queria saber dela. Para ela, tinha morrido.
Sentou-se, confortavelmente no banco do condutor, saboreando (não saboreando) aquela partida.
Horas de condução, sem parar, sem comer, sem dormir. Placas e placas a indicar o caminho que ela automaticamente percorria. Músicas e músicas que ouvia sem ouvir.
Na sua alma aquilo dormia, profundamente, num sono incómodo, mas esquecido. Tinha tentado arrancar aquilo de dentro de si, aquele monstro, mas não conseguiu. Existia como desde quase sempre tinha existido, estava lá.
Olhou o banco ao lado. A navalha que sempre trazia. Fez uma paragem brusca, na estrada, junto ao mar.
Com a navalha na mão, foi golpeando, num gesto já conhecido, cada centímetro da sua pele.
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