Hoje decidi  

Posted by Mag in

Hoje decidi.
Não me apaixonar por ti.
Não me deixar inebriar pelo doce aroma da tua pele junto da minha, que é apenas consequência do meu desejo, da minha fome de corpo, de sexo, de vida.

Hoje decidi.
Não me enamorar de ti.
Erguer muros onde a energia do teu abraço, onde o teu peito abandonado junto do meu, onde a osmose dos nossos seres um no outro constroem vias rápidas direito ao centro de mim.
Mas esbarrarão contra o meu não-querer!

Hoje decidi.
Que não te permitirei cavalgares-me livremente o sonho, aninhares-te em lembrança no meu ventre, adoçar-te o ser com devaneios de doida.

Porque nem sei sequer se sabes em que lugar do corpo te mora o coração.
Se conheces os atalhos em ti que te levam ao sítio onde o sentir é Rei, e a tua vontade se dobra perante o avassalar da onda, o inevitável mareio que é amar.
Onde deixas de saber quem és, porque te percebes tu e o outro num só e separados, no chão, sem limites visíveis. Em união e entrega.
Mas tu desconheces o abismo, temes a certeza da vertigem.

Porque desconheces, meu querido, como é delicioso saborear este passeio.

Por isso, hoje decidi.

Morada  

Posted by Mag in

Estou com raiva de ti.
Ou será de mim?
Endoidece-me este já não saber o que desejo, se continuar a fundir o meu corpo no teu, impunemente (até quando?), cedendo a esta vontade primitiva de te sentir em mim, se retornar (será possível?) a um estado de amizade e de carinho sinceros que o meu peito guarda por ti.
Em que parte de ti vivo eu?
Será que ainda tenho o meu lugar no abraço de amparo, na empatia de um sorriso, na carícia de uma palavra de apoio?
Ou será que vivo agora, lasciva e sedenta, Afrodite em vestido de cetim, nos teus sonhos? No teu desejo, que dizes permanente e insaciável, por mim?
Será que cruzei sem olhar para trás o limite traçado no éter, que passei a barreira sem saber que o caminho de regresso não mais o acharia, ou será que no fundo deste caminho de avanços e recuos, neste jogo de gato e rato, ainda existe a porta cor-de-rosa que nos trará de volta, resgatados e limpos de “pecado”, à segurança do que conhecíamos antes?
Não quero que me penses só como a amante que te satisfaz os sentidos, dessas plantas tu pelos caminhos como flores que o tempo desbotou, essas mulheres que já não têm nome nem lugar na tua lembrança.
Eu quero ser mais que um encontro rápido e quente nas traseiras do teu carro.
Eu quero ser mais que o sonho que te faz suar de noite e levantar com a boca seca a murmurar o meu nome.
Eu quero que o meu corpo te ampare os suspiros e a minha alma te console as dores do peito.
Eu quero ser o arco-íris nas noites de tempestade, e o lençol que te segura na cama, e a boca que te beija as feridas e os pontos frágeis e os pontos fortes, eu quero ser aquela a quem procuras quando a vida são nuvens e quando o dia é só sol.
Quero ser a Sombra que te consome em fogo, e a Luz que te envolve em serenidade.
Por isso diz-me onde moro, diz-me que habito em ti.
Porque se não sou, por circunstância, o todo, então diz-me adeus pela janela porque me vou, cigana, de saia rodada ajustando o bambolear do corpo, pela curva daquela esquina e me engole o pó que tudo cobre e esquece…

Promessa na distância  

Posted by Mag in

“Promete-me que me vais invadir os sonhos esta noite – disse ela, na distância - Deixarei a cancela aberta e o coração na esquina, porque te quer bailar. Quando chegares, saberei. Cantar-me-ás à janela do rés-do-chão da alma, uma canção sem palavras, em silêncio. E eu levanto-me de perto do lume, onde te espero meio adormecida, e o teu abraço sacode-me os sentidos, abafando o coração que grita e o corpo que treme. E, juntos, fazemos amor dançando, devagar, com os violinos da meia-noite, a praia escura e a lua negra como lençol.

Prometo – disse-lhe ele, na distância.”

Gosto de  

Posted by A Mor..

Sim, tudo é possível.
É possível todas as coisas - como coisas uma só: singular.
É possível esse gosto de amaranto quando lembro desse sonho recorrente secando minhas lágrimas.
É possível esse sóbrio meu agir, infinito agir de forma diferente a cada gota de vinho.
Eu carregando sementes como amuletos vermelhos colorindo meus dedos e meu rosto suado, procurando você em baixo de pedras, por traz de arbustos e vendo seus sinais em tudo.
A natureza ri de mim, ri da parte dela que perdeu o juízo. 

Uma noite com Caetano  

Posted by A Mor..

Caetano chegou sem cumprimentar. Foi direto pra cozinha, o jantar era servido ate as 19h30. Se alimentou, e assumiu seu posto, lugar onde ficaria ate as próximas 5 horas. Em pé, na portaria, observou o céu que escurecia rapidamente e comentou:

- Tomara que não chova.

Foram então suas primeiras palavras, depois do aceno com a cabeça.  Caetano trabalhava como segurança  em um pequeno restaurante burguês no centro da cidade. Não demorou muito e os primeiros pingos de chuva começaram a cair naquele inicio de noite, que marcava o primeiro dia de trabalho como recepcionista da menina branca.

Caetano ajeitou o paletó, e tirou de um canto um enorme guarda-chuvas. A chuva caia sobre a grama calmamente lavando as rosas que pareciam tristes naquele dia de finados. O movimento no restaurante era calmo, entretanto sempre saindo e chegando pessoas. Logo, os serviços de Caetano eram  necessários, um casal se aproximava. Com seu guarda-chuva Caetano os protegia dos pingos que caiam do céu.

Caetano olhou pro céu com uma certa tristeza, enquanto assoava seu nariz resfriado resmungava do trabalho noturno em dias chuvosos.

Mal sabia ele que uma tempestade viria, e que ele, na chuva, receberia vários clientes.
Tantas idas e vindas, levando e trazendo clientes, deixaram Caetano encharcado, em seu rosto percebia sua fúria contida. Caetano se encostou na parede, em pé, tirou um dos sapatos e apertou sua meia completamente molhada. Olhou pra menina branca, e disse:

- Queria tanto que um trabalho só, fosse suficiente pra cuidar de minha família. 

Rosa-prisão, rosa-loucura  

Posted by Mag in

Descalça, ela corria o mais que podia no relvado molhado da chuva, as gotas fustigando a bata branca enorme que o vento colava às suas pernas, a urgência correndo no sangue, segundos preciosos que se esgotavam de cada vez que tropeçava e caía desamparada no escuro da noite, os ramos ferindo-lhe os braços nús.

Atrás dela, num susto, começaram a soar as sirenes de aviso. Alguém fugira.
Imaginava a confusão que comaçava a entrar no estreito viver do hospício, em que tudo tinha o seu devido tempo, como um relógio demasiadamente bem oleado e afinado ao segundo.
O reboliço das enferneiras revirando quartos, enfermarias e salas de detenção, procurando o rato que fugira da ratoeira.
As caras daquelas que o Mundo dizia loucas encostadas às barras das janelas, umas enviando secretas preces de apoio a quem se atrevera a rasgar o véu da inconsciência regada a medicação e outras agoniando a raiva de não terem igual coragem.

Claro que para se escapar tivera de vender o corpo ao enfermeiro responsável pelo trancar de portas à noite. Fechara os olhos e fechara-se no seu âmago, tentando não sentir as suas carícias apressadas e a posse rápida e brutal. Havia um preço (alto) a pagar, e ela pagara-o. Vomitando em seguida o seu pecado.

Agora a chuva abençoada limpava-lhe o corpo de fluidos e náuseas, amparando-lhe a dor.

Mais uns passos e estava junto do muro onde combinara com Roberto, que devia atirar-lhe uma corda para se içar.

Os cães cheiravam-lhe o rasto e sentia a sua proximidade como um arrepio na nuca, mas não podia dar-se ao luxo de parar e olhar para trás. Por vezes, a ignorância é uma bênção.

O muro.
E nada de corda.

Roberto!, gritou.
O silêncio da resposta ensurdecia-a.

Tremendo, encostou-se ao muro e deixou-se cair de joelhos.
Tudo isto para nada. Prostituíra-se para nada. O desespero consumia-a.

E eles vinham aí, os cães, o rosa do uniforme das enfermeiras destacando-se na luz da lua. Rosa-enjôo, rosa-prisão, rosa-loucura.

Um mocho uivou e voou para longe.
Uma corda caiu-lhe sobre os cabelos revoltos, e o coração começou de novo a latir.
Subiu vertiginosamente, com forças que desconhecia ainda possuir.

Do outro lado, Roberto amparou-lhe a queda no seu colo.
Retiraram a corda e, de mão dada, sorrindo, fugiram para o Mini que os esperava.