Objectos de estudo em busca de um crime original e da maneira perfeita de bater o sistema, numa possível luta judicial. É impossível ser apanhado ou pelo menos castigado. O crime só não compensa quando é crime. Neste caso é justiça. A minha divina justiça de adaptar o mundo à minha vontade.
Não abro nem uma janela, quero a escuridão, ela é minha amiga.
Como é bom saber que vou matar, quem merece morrer. Alguém que ousou mudar o mundo que eu moldo, que eu controlo. Ninguém o pode fazer. A minha vontade é superior, é divina. Eu sou mais do que o meu próprio Deus, eu sou normal entre os Deuses, sou mais um. Uma voz e uma vontade, decisiva no futuro de todos os básicos mortais que me contrariam.
Aquela senhora que representa a justiça, é o símbolo dos homens fracos. A fraqueza humana está patente naquela mulher, mal vestida, com uma balança de pesos adulterados, uma espada e vendada como que a pedir que abusem dela. Não. O símbolo divino da justiça, será a partir de hoje um busto, com a minha cara, o meu corpo. Numa mão um livro, representando o meu conhecimento superior, na outra uma espada, para matar quem ousar a questionar a minha vontade divina.
Sinto-me cansado e acordei há pouco. Tenho estudado uma média de 20 horas por dia, conheço as leis e o corpo humano ao mais pequeno detalhe. Quase que consigo sentir o doce cheiro de um cadáver, do cadáver dele.
Vagueio pela casa, protegido da luz natural, numa escuridão interrompida somente por velas solitárias.
Vou à cozinha para comer algo, quando vejo o meu reflexo no espelho do corredor. Paro.
A minha cara está pálida como se fosse um fantasma, meus olhos encovados e sem brilho, rodeados por umas olheiras que se perdem na minha barba, que cobre o restante da minha cara.
"Quem és tu?", pergunto eu ao reflexo.
O reflexo observa-me sem responder. Num acesso de raiva parto o espelho num só murro.
Observo ao longe uma luz intermitente. É o meu telemóvel junto ao telefone fixo onde o deixei à 25 dias a carregar. Olho para o telefone e o visor do atendedor de chamadas, regista 32 mensagens. Pego no telemóvel e tenho 34 mensagens não lidas e 62 chamadas não atendidas. Alguém me procura, gente que ignoro, procura-me.
A caminho da cozinha a escuridão da casa é interrompida por uma luminosidade por debaixo da porta. Aproximo-me e abro a porta da sala. A luz vinda da janela do terraço, cega-me. Os olhos doem-me, a luz magoa-me os olhos e arde-me na pele.
Fazendo um esforço enorme para ver, aproximo-me da janela e passado minutos vejo a rua, o mundo.
Tudo está igual, nada mudou. Só eu mudei.
Viro costas à luz e ao mundo, sabendo que iria voltar, abro todas as janelas deixando entrar a luz e ar.
"Está na hora!" digo eu com uma convicção que nunca tive.
Arranco as roupas já coladas ao meu corpo e forço-me a um duche frio, para retirar o cheiro a podre que emanava e faço a barba.
Então, olho-me no espelho novamente e vi outra cara. Um tom rosado de pele, um brilho forte nos olhos, parecia ver as olheiras a desaparecer. Sorri, por me reconhecer.
"A ti conheço-te", disse eu para o meu reflexo.
Após vestir roupa lavada, pego nas chaves do meu carro e saio de casa.
"Matei-o, finalmente, matei-o", disse eu já na rua ao sentir o calor agradável do sol na minha pele.
Era mesmo verdade, ele estava morto. O responsável por tudo o que me corria mal. O objecto de todo o meu ódio. Com ele morreu o ódio que me consumia por dentro.
Ele morreu e fui eu que o matei!
Matei parte de mim.
FIM