Matei-o (Parte 3/3)  

Posted by Bruno Fehr in

Acordo. São 16 horas, o meu quarto está escuro por estar aqui fechado há 25 dias. Por todo o lado, vejo livros de medicina, onde aprendi e aprendo como dissecar corpos. A localização das artérias, os pontos mais sensíveis à pressão, à dor. Livros, sobre os maiores criminosos de todos os tempos. O Código penal. Livros de direito onde estudei casos de crimes violentos.
Objectos de estudo em busca de um crime original e da maneira perfeita de bater o sistema, numa possível luta judicial. É impossível ser apanhado ou pelo menos castigado. O crime só não compensa quando é crime. Neste caso é justiça. A minha divina justiça de adaptar o mundo à minha vontade.

Não abro nem uma janela, quero a escuridão, ela é minha amiga.
Como é bom saber que vou matar, quem merece morrer. Alguém que ousou mudar o mundo que eu moldo, que eu controlo. Ninguém o pode fazer. A minha vontade é superior, é divina. Eu sou mais do que o meu próprio Deus, eu sou normal entre os Deuses, sou mais um. Uma voz e uma vontade, decisiva no futuro de todos os básicos mortais que me contrariam.

Aquela senhora que representa a justiça, é o símbolo dos homens fracos. A fraqueza humana está patente naquela mulher, mal vestida, com uma balança de pesos adulterados, uma espada e vendada como que a pedir que abusem dela. Não. O símbolo divino da justiça, será a partir de hoje um busto, com a minha cara, o meu corpo. Numa mão um livro, representando o meu conhecimento superior, na outra uma espada, para matar quem ousar a questionar a minha vontade divina.

Sinto-me cansado e acordei há pouco. Tenho estudado uma média de 20 horas por dia, conheço as leis e o corpo humano ao mais pequeno detalhe. Quase que consigo sentir o doce cheiro de um cadáver, do cadáver dele.

Vagueio pela casa, protegido da luz natural, numa escuridão interrompida somente por velas solitárias.
Vou à cozinha para comer algo, quando vejo o meu reflexo no espelho do corredor. Paro.

A minha cara está pálida como se fosse um fantasma, meus olhos encovados e sem brilho, rodeados por umas olheiras que se perdem na minha barba, que cobre o restante da minha cara.

"Quem és tu?", pergunto eu ao reflexo.

O reflexo observa-me sem responder. Num acesso de raiva parto o espelho num só murro.

Observo ao longe uma luz intermitente. É o meu telemóvel junto ao telefone fixo onde o deixei à 25 dias a carregar. Olho para o telefone e o visor do atendedor de chamadas, regista 32 mensagens. Pego no telemóvel e tenho 34 mensagens não lidas e 62 chamadas não atendidas. Alguém me procura, gente que ignoro, procura-me.

A caminho da cozinha a escuridão da casa é interrompida por uma luminosidade por debaixo da porta. Aproximo-me e abro a porta da sala. A luz vinda da janela do terraço, cega-me. Os olhos doem-me, a luz magoa-me os olhos e arde-me na pele.
Fazendo um esforço enorme para ver, aproximo-me da janela e passado minutos vejo a rua, o mundo.
Tudo está igual, nada mudou. Só eu mudei.

Viro costas à luz e ao mundo, sabendo que iria voltar, abro todas as janelas deixando entrar a luz e ar.

"Está na hora!" digo eu com uma convicção que nunca tive.

Arranco as roupas já coladas ao meu corpo e forço-me a um duche frio, para retirar o cheiro a podre que emanava e faço a barba.
Então, olho-me no espelho novamente e vi outra cara. Um tom rosado de pele, um brilho forte nos olhos, parecia ver as olheiras a desaparecer. Sorri, por me reconhecer.

"A ti conheço-te", disse eu para o meu reflexo.

Após vestir roupa lavada, pego nas chaves do meu carro e saio de casa.

"Matei-o, finalmente, matei-o", disse eu já na rua ao sentir o calor agradável do sol na minha pele.

Era mesmo verdade, ele estava morto. O responsável por tudo o que me corria mal. O objecto de todo o meu ódio. Com ele morreu o ódio que me consumia por dentro.
Ele morreu e fui eu que o matei!

Matei parte de mim.

FIM

This entry was posted on domingo, novembro 9 at domingo, novembro 09, 2008 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

29 Devaneios

Anónimo  

"Don't let me get me, I'm my own worst enemy"

Gostei, tem uma ironia e requinte, estilo Dexter mas menos premeditado e sujo.

Parabéns continua.


chii

10 de novembro de 2008 às 01:43

Surpreendente... gostei!

=]

10 de novembro de 2008 às 01:57

Parece mesmo tirado de uma mente psicótica... Gostei muito!
Beijinhos
P@pinh@

10 de novembro de 2008 às 10:15

:)
estava a espera de outro tipo de final(com sangue! :P),induziste uma pessoa em erro! (LOL)

acho que era o efeito pretendido,e por isso acho que foi uma optima opçao como final!

10 de novembro de 2008 às 10:25

Adorei...mesmo. O final está genial :)

10 de novembro de 2008 às 14:57

Inesperado!
Aliás, inesperadamente inesperado!

Conseguiste :)

10 de novembro de 2008 às 16:48
Anónimo  

Oh.. se calhar é da disposição, mas ele matou-o mesmo ou nem por isso?!

10 de novembro de 2008 às 17:29

Gostei hehe, imprevisivel, e com uma óptima mensagem.

10 de novembro de 2008 às 17:59
Anónimo  

Infelizmente li os comentários antes de ler o texto (pensei que estava nos comentários do texto anterior) e fiquei logo à espera de um final à sexto sentido... matou-me um bocado a surpresa.
Mas está genial. :)
Pudera muitos de nós conseguirem matar essa parte de nós que nos lixa tudo...
E pudera muitos de nós tirarem um curso de medicina em menos de um mês loooooooooool! =D mas, olha que,segundo consta, o neurocirurgião do ant guterres passou os 6 anos do curso de medicina a estudar a uma razão de 20 horas por dia (aulas incluidas, que nas aulas tb se estuda)...
Porra, e a dormir 4 horas por dia??? e sem ver luz?? o home não ficou com agorafobia qd saiu à rua??

10 de novembro de 2008 às 23:37
Anónimo  

Um bom conto, com um final surpreendente.
Prende a atenção desde o início, levando-nos a querer saber o que vai acontecer, o desenrolar da estória, parece que vai encaminhando para um determinado final no entanto este acaba por ser bem inesperado.

11 de novembro de 2008 às 02:29
Anónimo  

Um bom conto, com um final surpreendente.
Prende a atenção desde o início, levando a querer saber o que vai acontecer, o desenrolar da estória, parece que vai encaminhando para um determinado final no entanto este acaba por ser bem inesperado.

11 de novembro de 2008 às 02:30

Anónimo chii disse...

"Gostei, tem uma ironia e requinte, estilo Dexter mas menos premeditado e sujo."

Eu sou limpinho :)

12 de novembro de 2008 às 04:09

A Mor.. disse...

"Surpreendente... gostei!"

Obrigado!

12 de novembro de 2008 às 04:09

Papinha disse...

"Parece mesmo tirado de uma mente psicótica... Gostei muito!"

A luta com o innerself, com os nossos demónios, só isso.

12 de novembro de 2008 às 04:10

ceptic disse...

"estava a espera de outro tipo de final(com sangue! :P),induziste uma pessoa em erro! (LOL)"

Um final previsivel? Nao é o meu estilo, mas posso tentar. Será é aborrecido :D

12 de novembro de 2008 às 04:11

Cor do Sol disse...

"Adorei...mesmo. O final está genial :)"

Obrigado.

12 de novembro de 2008 às 04:11

Pax disse...

"Inesperado!
Aliás, inesperadamente inesperado!"

Como pretendia mas nao sabia como o fazer :D

12 de novembro de 2008 às 04:12

yargo disse...

"Oh.. se calhar é da disposição, mas ele matou-o mesmo ou nem por isso?!"

É da disposicao.
Nao ele nao matou ninguém, simplesmente venceu os seus demónios e acordou para uma nova vida, sem rancor nem ódio!

12 de novembro de 2008 às 04:13

Fénix disse...

"Gostei hehe, imprevisivel, e com uma óptima mensagem."

Objectivo atingido :D

12 de novembro de 2008 às 04:13

van disse...

"Infelizmente li os comentários antes de ler o texto (pensei que estava nos comentários do texto anterior) e fiquei logo à espera de um final à sexto sentido... matou-me um bocado a surpresa."

Ahahahahaha

"Mas está genial. :)
Pudera muitos de nós conseguirem matar essa parte de nós que nos lixa tudo..."

Sim, é verdade!

"E pudera muitos de nós tirarem um curso de medicina em menos de um mês loooooooooool! =D mas, olha que,segundo consta, o neurocirurgião do ant guterres passou os 6 anos do curso de medicina a estudar a uma razão de 20 horas por dia (aulas incluidas, que nas aulas tb se estuda)..."

Mas é possível aprender muito por esses livros, desde que se queira e que se esteja intelectualmente preparado para esse tipo de informação. Há história de cirurgiões, sem formação que são apanhados décadas depois.

Aprender a cortar e evitar zonas vitais, é fácil. Aprender as zonas de pressao mais sensíveis à dor é facilimo, já estudei sem ser em medicina.

12 de novembro de 2008 às 04:16

São disse...

"Prende a atenção desde o início, levando-nos a querer saber o que vai acontecer, o desenrolar da estória, parece que vai encaminhando para um determinado final no entanto este acaba por ser bem inesperado."

É esse o objectivo.

12 de novembro de 2008 às 04:17

"Como pretendia mas nao sabia como o fazer :D"

Conseguiste.
E, felizmente, da maneira que doeu menos ;)

12 de novembro de 2008 às 12:29

Ah, essas zonas de pressão tb eu conheço e não tive de estudar nada looooooooooooooool! é só acertar mesmo no meio!! =D

12 de novembro de 2008 às 21:22

Pax disse...

"Conseguiste.
E, felizmente, da maneira que doeu menos ;)"

Ainda bem, ahahah

13 de novembro de 2008 às 04:59

Van disse...

"Ah, essas zonas de pressão tb eu conheço e não tive de estudar nada looooooooooooooool! é só acertar mesmo no meio!! =D"

Há zonas ainda mais dolorosas!

13 de novembro de 2008 às 04:59

Muito muito muito bom, vou dizer ao Lu para vir espreitar, é o género de escrita que ele aprecia ;).

Dentadinhas das de lá do meu espaço

14 de novembro de 2008 às 14:04
rata sensível  

Hey, I know youI was never faithful
And I was never one to trust
Borderlining schizo
And guaranteed to cause a fuss
I was never loyal
Except to my own pleasure zone
I'm forever black-eyed
A product of a broken home

I was never faithful
And I was never one to trust
Borderline bipolar
Forever biting on your nuts
I was never grateful
That's why I spend my days alone
I'm forever black-eyed
A product of a broken home...Black-eyed

13 de maio de 2009 às 17:13
Anónimo  

Sei lá... às vezes parece que tens traços de sociopatia.

Achas-te de certa forma um mensageiro da verdade/conhecimento?

medo...

18 de maio de 2009 às 02:14

Ficção, sabe o que é?

18 de maio de 2009 às 02:46

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