Uma enfermeira, diz-me: "bem vindo de volta", como se ela se importasse. Como se alguém pudesse ser bem vindo de partida. Como se eu devesse estar feliz por aqui estar.
Quero voltar para onde estava. Não era vida, não era morte, era sim o melhor dos dois mundos, o meu coma.
Um médico informa-me que sofri danos graves na coluna vertebral. Ora, aqui está um informação útil, mas a intenção era mesmo essa, mas os danos deveriam ter-me levado à morte e não aqui, neste antro de malucos que constatam o óbvio.
"Temo que não voltará a andar"
"Desculpe?"
"Você encontra-se paralisado do pescoço para baixo. Lamento"
Lamenta, diz ele. Eu lamento que ele lamente quando não tem nada que lamentar, como se o facto deste parvinho lamentar me fizesse sentir melhor. Lamento mas não faz.
Não vou voltar a andar, nem sequer ficar de pé. Nunca irei conseguir comer sozinho, abraçar alguém, nem pegar numa caneta e perder-me de desabafos. Vou ser uma cabeça com um corpo parasita. Um inútil. Inútil, sempre fui, mas agora serei um inútil dependente. O mais triste é que serei dependente das pessoas que tentei abandonar.
Toda a gente tem direito a uma segunda oportunidade, mas eu só tive uma. Uma única chance de me matar. Falhei e como castigo não poderei conseguir esse objectivo. Eu não me queria tentar matar, eu queria conseguir.
"Foi-te dada uma segunda oportunidade de viver, segura-te a ela com toda a tua força", diz-me a enfermeira em tom sussurrante, interrompendo os meu choro silencioso.
Eu não pedi uma segunda oportunidade de viver. Uma segunda oportunidade de viver, deveria vir acompanhada por uma segunda oportunidade de morrer, e não vem. Mais um vez, e tal como à nascença a vida é-me imposta de uma forma cruel e a minha vontade de morrer não é aceite. Quero libertar-me, deixem-me ir...
A eutanásia é crime, mas só é crime porque alguém com poder dado por mim, com ordenado pago por mim o diz. A eutanásia deve ser uma escolha, uma recusa de vida imposta, uma vontade de ser finalmente livre e de libertar quem nos rodeia. Eu quero, eu sei que quero, nem mais nem menos que queria quando saltei daquele terceiro andar. Quero morrer.
Este meu estado clínico deprime-me por não poder escolher, por não ter controlo sobre mim. Choro numa dor tremenda, a dor de viver.
Só confio na Renata e por isso peco-lhe para ela escrever um E-mail a um amigo na Áustria. Ela não sabe Alemão, mas escreve o que lhe dito. Enquanto escreve, chora, perguntando "o que estás a fazer?". Não lhe respondo, mas as lágrimas dela queimam-me por dentro, ela é a única pessoa no mundo que não quero magoar, é a única pessoa no mundo com valor para mim e se pudesse, seria a única pessoa do meu mundo, do mundo que nunca criei.
A Renata tenta ler o que escreveu, mas não o sabe ler. Mostra-me e eu leio:
"Dr. Kusch, necessito com o máximo de urgência dos serviços da sua invenção. Irei transferir o dobro do valor que o senhor cobra pela máquina, para que me seja entregue o mais rápido possível"
O E-mail é enviado. Não cedo às pressões da Renata de lhe dizer o que acabei de fazer. Sem perceber o que está a fazer ela faz a transferência online em meu nome.
A Renata não sabe o que fez e nem imagina o quanto vou necessitar dela.
Já em casa, sou cuidado por duas enfermeiras que fazem turnos entre si. Recusei a ajuda de familiares, pois enquanto tiver dinheiro, poderei pagar e quando o dinheiro terminar, já cá não estarei.
Afinal há uma segunda, que é também a ultima oportunidade e que acaba de chegar pelo correio.
Dispenso as enfermeiras, não as quero em minha casa, a Renata tem a chave e deve estar quase a chegar, tal como prometeu.
"Abre-me essa caixa"
"O que tem dentro?"
"É um aparelho médico"
A Renata abre e vê um estranho aparelho, acompanhado de umas seringas e tubos.
"Para que serve isto, tudo?"
"É para um tratamento"
"Tratamento?"
"Sim, a minha única chance"
"E podes ficar melhor com isto?"
"Não posso. Vou ficar melhor!"
Ela liberta um sorriso, acreditando em tudo o que disse. Não lhe quero mentir, mas não lhe posso dizer a verdade, por isso digo meias verdades.
Antes de ela seguir as minhas instruções, digo-lhe para calçar umas luvas que as enfermeira lá tinham deixado. Não poderia partir e deixar que ela fosse punida pela minha morte.
O aparelho que comprei foi um exemplar da polémica invenção de um médico Alemão a viver na Áustria, chama-se a Máquina Da Morte, na verdade é uma máquina que efectua a eutanásia sem que alguém comenta um crime ao olhos da lei. Após a maquina ser montada e ligada à veia de quem quer morrer, poderá ser o próprio a activá-la.
A máquina está ponta, está ligada à corrente e só falta ligar a máquina a mim. Peço à Renata para substituir o meu tubo do soro, pelo da máquina. Os olhos dela brilham repletos de lágrimas, os lábios tremem. Ela sabe.
"Não tenhas medo, confia em mim"
Digo eu sorrindo. Ela acena a cabeça e continua.
Está tudo pronto.
Digo-lhe para colocar o controlo remoto debaixo do meu queixo, as luvas no lixo, onde se vão misturar com todas as outras e peço-lhe para partir. Preciso que ela saia, preciso de lhe dar tempo para sair e ser vista por outras pessoas. Preciso de esperar uma horas até ao meu fim.
Antes de partir, ela beija-me a face e de coração destroçado, diz:
"Não me deixes assim..."
Apesar da dor no coração de a ver daquela maneira. Saber que estou a magoar alguém que adoro, custa-me, mas tenho de ser forte, pois é isto que eu quero. Respondo-lhe unicamente:
"Não me obrigues a viver, assim..."
FIM