Coma (parte 2/3)  

Posted by Bruno Fehr in

Olho em volta e nada vejo. Escuridão total. Isto certamente não é o céu nem o inferno. Não tenho frio nem calor. Em algum lugar estarei com toda a certeza e tudo não termina com a morte.
Gosto disto. É como se estivesse numa sala sem paredes. Talvez tenha paredes, eu é que não as vejo.
Reparo que não falo comigo, simplesmente penso. Quem bom. Pensar é sem duvida a melhor maneira de conversar com alguém que nos ouve realmente. Alguém, que mesmo que não nos entenda, nos ouve e nos apresenta uma infinidade de possíveis soluções, respostas, argumentos, tal como as que eu me apresentei, tendo no final optado pelo suicídio.
Não estou minimamente preocupado com a reacção das pessoas ao verem-me pendurado pelo pescoço, do alto da minha varanda. Rio, ao imaginar-me pendurado ao nível da janela da sala do meu vizinho do primeiro andar, fazendo-lhe uma careta.

Aqui, neste estranho e escuro local para onde fui transportado após a minha morte, ninguém me pode incomodar, ninguém me pode chatear. É o oposto do mundo em que eu vivia, não querendo viver. Gosto de aqui estar e mesmo agora cheguei. Gostaria que pudessem ver toda esta paz. É lindo, pois não tem nada para ver. Mas, não posso mostrar a ninguém e ainda bem, pois se o fizesse mais gente quereria para aqui vir tornando este mundo, no inferno do qual acabei de fugir, no qual a vida me foi imposta, obrigando-me a suportá-la. É aqui quero morar, eu e o meu pensamento, que juntos somos um.
Aqui posso-me perder em pensamentos, estar sozinho sem nunca estar só. Eu gosto de estar comigo de conversar comigo, nem sempre me compreendo, mas ouço-me e no fundo é só isso que precisamos, de alguém que nos ouça, mais do que isso, que nos compreenda ou pelo menos tente.
Aqui, já não ouço vozes, só o meu pensamento, que na verdade parece não ser unicamente dentro da minha cabeça, pois ouço-o com o eco deste local que me parece infinito.
Não me sinto a passar pelo tempo, é como se ele não existisse, tal como nunca existiu, mas que mesmo assim sempre controlou a minha vida. Não me sinto cansado, sinto-me novo e livre.

O meu silencio é interrompido por sussurros... são vozes, mas não as que ouvia antes. Estas parecem falar de um local fora do meu infinito. Vozes de pessoas atarefadas que quebram o meu silencio. Não. Não quero ser interrompido, quero o meu ruidoso silencio de pensamentos, quero perder-me em divagações sem sentido, quero tentar perceber o que penso e conversar comigo próprio. Deixem-me.

"Não vais ouvir o que dizem!"
"Voltaste?"
"Eu nunca parti"
"Mas..."
"Podes tentar matar-te, que eu não te vou deixar"
"Tentar?"
"Vida. Morte. Nem tudo é preto e branco, há o cinzento"
"Eu matei-me"
"Há coisas piores que a morte"
"Eu estou vivo?"
"Não"
"Morto?"
"Não"
"Então mas..."
"Ouve as vozes"
"Estão longe, não consigo ouvir"
"Não ouves porque não as queres ouvir, elas falam para ti. Luta"
"Luto? Passaste a minha vida a dizer-me para desistir"
"Ahahah, luta"

Não estou morto, não estou vivo, onde estou? Como estou?
Não vejo uma luz ao fundo do túnel que me levará ao céu, nem um buraco sem fim que me levará ao inferno. Nada!
Sinto dor. Não é bem dor, sinto uma dormência pelo corpo, uma inércia que me parece dor, mas não dói, é... Estranho.
A minha escuridão é quebrada por uma linha de luminosidade horizontal que ocupa todo o meu campo de visão. Uma linha semelhante à do horizonte que dividia o mar do céu, em todos os por-do-sol que vi. Gostaria de ter visto mais.
A linha aumenta de tamanho invadindo o meu confortável mundo. Nada vejo, a luz cega-me. Vejo sombras, e lentamente os meus olhos habituam-se à luz o que me permite finalmente ver...

... Não!!!!



Final dia 23.02.2009

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9 Devaneios

Até agora, este texto tem sido emocionante, espero não me desiludir com os finais mirabolantes e imprevisiveis que nos habituaste Bruno.

;)

Tá fixe !

21 de fevereiro de 2009 às 09:44

Não acredito na vida após a morte, morremos a acabou. Deve ser como dormir mas sem nos lembrarmos dos sonhos, uma espécie de "coma eterno" lol que foleiro!
Agora a serio não sinto necessidade de acreditar em algo mais. Deve-se viver a vida e não esperar vive-la\realiza-la após a morte.
O que me espanta é que em todas as descrições da suposta morte, é sempre tudo muito calmo, silencioso, com uma luminosidade que não fere a vista, tudo aparentemente perfeito... o contrario da vida.
Será que a idealizam assim porque não conseguem alcançar essa perfeição em vida?

Estive clinicamente morta durante três minutos e meio... e não vi nada! Não vi nenhuma luz, nem senti calma, nem nada, não vi nada!
Adormeci e 3 minutos e meio depois acordei.

21 de fevereiro de 2009 às 23:20

I.D.Pena disse...

"Até agora, este texto tem sido emocionante, espero não me desiludir com os finais mirabolantes e imprevisiveis que nos habituaste Bruno."

Nao acho o final deste imprevisível.

22 de fevereiro de 2009 às 00:00

LaveyGirl disse...

"O que me espanta é que em todas as descrições da suposta morte, é sempre tudo muito calmo, silencioso, com uma luminosidade que não fere a vista, tudo aparentemente perfeito... o contrario da vida."

Este texto não tem qualquer descrição da morte :), até porque até hoje ainda não matei ninguém num dos meus contos. Será desta, que mato alguém?
Será que a idealizam assim porque não conseguem alcançar essa perfeição em vida?

"Estive clinicamente morta durante três minutos e meio... e não vi nada! Não vi nenhuma luz, nem senti calma, nem nada, não vi nada!"

Estive em coma vários dias e lembro-me de muito, na maioria sonhos, vozes.

22 de fevereiro de 2009 às 00:03
Anónimo  

“Eu gosto de conversar comigo, nem sempre me compreendo, mas ouço-me e no fundo é só isso que precisamos, de alguém que nos ouça, mais do que isso que nos compreenda ou pelo menos que tente”


Conversar connosco, é algo fácil e difícil ao mesmo tempo, pensamos e voltamos a pensar, dissecamos pensamentos e sentimentos na tentativa de compreender, duvido que exista alguém que se compreenda sempre.

Saber ouvir é uma “arte”, a nós e aos outros mas para alguém ouvir e entender ou tentar entender é necessário a outra pessoa querer falar e o difícil está precisamente aí, mesmo quando alguém se apercebe que algo não está bem e pergunta a pessoa mente e diz que sim.
No entanto boa parte da resolução de um problema, passa por partilha-lo com alguém, pois por mais que nos analisemos e apresentemos soluções, respostas, argumentos, alguém que está de fora vê as coisas de uma outra perspectiva e apresenta outras soluções.

22 de fevereiro de 2009 às 03:28

São disse...

"Conversar connosco, é algo fácil e difícil ao mesmo tempo, pensamos e voltamos a pensar, dissecamos pensamentos e sentimentos na tentativa de compreender, duvido que exista alguém que se compreenda sempre."

Sempre não, mas a conversa serve para que nos aceitemos a nós próprios.

"No entanto boa parte da resolução de um problema, passa por partilha-lo com alguém, pois por mais que nos analisemos e apresentemos soluções, respostas, argumentos, alguém que está de fora vê as coisas de uma outra perspectiva e apresenta outras soluções."

O problema da partilha é que as pessoas não sabem ouvir, sentem-se na necessidade de opinar.

27 de fevereiro de 2009 às 04:41

"Estive em coma vários dias e lembro-me de muito, na maioria sonhos, vozes."

Não estarás a comparar um coma a uma morte?!

No coma há actividade cerebral, dai as recordações que tens.

O acordar de um coma é mais suave que um acordar com choques...
Vi o meu primo acordar do coma em que esteve 6 meses e foi calmo, foi mesmo um acordar... comigo não foi assim... foi como se pela primeira vez oxigénio percorresse o meu corpo... doeu... é como sentir fogo a percorrermos as veias... foi agitado... incoerente... confuso... assustador... eww esquece informação desnecessária...

1 de março de 2009 às 22:33

LaveyGirl disse...

"Não estarás a comparar um coma a uma morte?!

No coma há actividade cerebral, dai as recordações que tens."

Mas porque é que estaria comparar o coma a uma morte? Eu estou a falar do conto em questão e lá ninguém morreu.

1 de março de 2009 às 22:44

Bem, na morte clinica tb há actividade cerebral, isto sem querer menosprezar o que a laveygirl experenciou, nem imagino o que terá sido.

4 de março de 2009 às 01:30

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