Não resisto e aproximo-me da multidão. Não sei como explicar mas há algo de irresistível numa multidão, como que um magnetismo humano que nos atrai. Ao referir-me a essa atracção como magnetismo é como estar a camuflar algo banal, fazendo parecer especial. Não, não é nada de mágico é a simples e estúpida curiosidade humana que nos faz ir ver o que todos os outros estão a ver. Não que a curiosidade seja má. A curiosidade é boa, quando temos curiosidade em saber o que mais ninguém sabe e chegar onde mais ninguém chega, mas quando nos leva a querer ver o que toda a gente já viu e sabe, não é mais do que uma fraqueza. A esta hora da manha, depois de uma noite de copos e festa, não tenho forcas para ter vontade própria e aproximo-me da multidão como uma ovelha se aproxima do rebanho.
Ao aproximar-me, reparo que todos olham para o mesmo local. Está algo ou alguém ali no passeio e é o centro das atenções. Um rapaz. Esta um rapaz deitado no passeio. Assim de repente não encontro justificação para alguém estar deitado no passeio, a não ser que tenha sido atacado, esteja bêbedo ou se atirado do topo deste edifício, se assim foi é bom que tenha sido do topo, pois o meu prédio só tem 3 andares e mesmo saltado do terceiro andar as probabilidades de sobreviver deveria ser suficientes para desmotivar o salto. O rapaz tem um sorriso na cara, parece estar em paz. Eu conheço-o… acho que o conheço. A cara dele… a roupa… é-me tudo tão familiar mas não me consigo lembrar quem é nem de onde o conheço. Talvez more aqui na rua. Ouço no meio da multidão um nome:
“-Pedro, o nome dele é Pedro”, diz uma senhora de idade.
O meu nome também é Pedro. Quero saber mais, sobre ele. Sinto algo dentro de mim que me compele a saber mais. Tenho um sabor azedo na boca e não e vomito como seria de esperar de alguém que fez as misturas alcoólicas que eu fiz esta noite. E um sabor a… pilhas ou baterias… aquela sabor quando se toca com a língua numa pilha. Uma amiga disse-me um dia que esse era o sabor da morte, talvez… talvez ela seja louca.
Pergunto se alguém sabe o nome de família. Não pergunto a ninguém em especial, faço a pergunta para o ar, esperando que qualquer daquelas pessoas me responda. Ninguém responde, ninguém parece sequer ter reparado que eu fiz uma pergunta. Tento mais uma vez, desta vez pergunto se alguém sabe onde ele mora. Mais uma vez sou ignorado. Talvez a solução seja perguntar a alguém em particular. Vejo o meu vizinho do primeiro andar, aproximo-me e tento atrair a sua atenção:
"Bom dia Sr.João"
Nada, parece não me ouvir ou esta a ignorar-me. Recorro ao toque, apesar de odiar tocar em pessoas as vezes e a única maneira de lhes chamar a atenção. Ao tentar tocar-lhe no ombro sinto uma brisa gelada que em segundos passou por mim, ao ver a minha mão a passar pelo corpo dele como se ele não estivesse ali. Olho para o chão, fixo a cara do rapaz. Pedro, Pedro Fernandes, este rapaz deitado no passeio… sou eu! Como pode ser? Como posso estar aqui, no meio da multidão a olhar para mim, deitado no passeio?
A multidão está a ficar animada, isto já parece uma festa em que eu sou o convidado de honra, não eu aqui em pé, mas o eu ali deitado. As pessoas parecem ter esquecido que é dia de trabalho. Começam as chegar os VIP´s da festa, os primeiros a chegar são os bombeiros seguidos da policia. Incrível como a policia consegue chegar mais tarde, tendo de percorrer um terço do caminho. O primeiro bombeiro parece verificar os sinais de vida, olha para o segundo bombeiro a acena negativamente dizendo: “nada a fazer”. Nada a fazer? Que idiotas, com todo o respeito pelo trabalho desenvolvido pelos bombeiros voluntários, eles não tem formação medica para fazer julgamentos deste tipo. O que eu preciso é de um medico, não de um bombeiro, só espero é que o medico não seja legista, pois só conheço um tipo de pessoas que precisam de um medico dessa especialidade e essas pessoas não voltam a ser vistas com saúde.
E se morri? Pelos visto morrer e como levar um par de cornos, somos os últimos a saber e nunca descobrimos de um forma suave.
Vejo que me colocam na ambulância, reparo que a minha cara vai coberta. E engraçado ver que o cientista que me declarou morto é o condutor, provavelmente quando não esta a conduzir ambulâncias é taxista de profissão.
Se morri, dentro de horas estarei numa maca enquanto me abrem para ver a minha beleza interior. Eu acho que a autopsia só é obrigatória, não para determinar a causa de morte em todas as mortes, pois alguém com um buraco na cabeça feito por uma Glock tem a causa de morte determinada sem ser necessário abrir-lo de alto a baixo. A autopsia existe sim e é obrigatória para evitar problemas futuros. Desta maneira mesmo que a pessoa não esteja mesmo morta e esteja sim num coma profundo em que o batimento cardíaco não é detectado, podemos afirmar com toda a certeza que não ira sobreviver à autopsia.
Não estou convencido, se morri o que raio estou aqui a fazer a olhar para a uma ambulância a partir comigo la dentro? Não deveria eu ir para o “outro lado”? Seja lá esse lado onde for, certamente não é aqui, se fosse, não lhe chamariam o “outro” lado mas sim, este lado, o mesmo lado ou a mesma merda não outra. Sei lá ir para o céu, para o inferno ou para aquele sitio de que falam entre o céu e o inferno, onde se decide para onde a alma devera ir, o purgatório. Será que a minha vida foi tão complicada que nem para ai tenho o direito de ir. Eu sei que não fiz nada na minha vida para merecer ir para o paraíso, ainda bem. Acho que passar a eternidade a fazer piqueniques em imensos jardins a ouvir anjos a tocar harpa seria uma tortura e não uma recompensa, ainda por cima passaria a ser eunuco, visto que os anjos não tem sexo. Que chatice. Se não fiz bem para ir para o céu é porque fiz mal, portanto não há necessidade de ser julgado no purgatório e posso passar directamente para o inferno. O inferno será certamente mais quente, o álcool e o sexo serão certamente admitidos e possivelmente obrigatórios, fazendo o inferno parecer-me muito mais apetecível. Mas, não, continuo aqui. Devo ter levado mesmo uma vida de abusos e pecado, ao ponto de nem no inferno poder entrar e o meu castigo ser ficar aqui na mesma vida mas sem o corpo que acabou de morrer. Que merda.
Pode ser que haja regras, sei la um anjo da morte que nos indica o caminho a seguir, um túnel a travessar um autocarro, qualquer coisa. Se há regras, podiam pelo menos informar os potenciais interessados, neste caso os recém falecidos como eu. Olho em volta, procuro alguém com um robe preto e um capuz, a imagem na minha mente do “Grim Reaper” ou na versão mais suave de Florbela Espanca a “Sra. Dona Morte”. Não vejo ninguém que se possa parecer com a morte. Pelo visto nem morto eu chego ao destino a horas.
Ninguém me ouve, ninguém me vê e como se não existisse. “Penso logo existo”, claro que sim, se não existisse não poderia estar a pensar nisso. Mas como podemos provar a nossa existência perante terceiros, não que isso seja importante, mas como poderemos provar a nossa existência a nos próprios sem a ajuda de terceiros? Principalmente quando se tem as duvidas que eu tenho.
Esta coisa de estar morto não é nada do que eu imaginava. Ainda tenho vontade própria, portanto é mentira que o único funeral que não podemos evitar ir é o nosso. Não. Eu posso decidir não ir ao meu funeral, já me levaram e eu não fui comigo, portanto…
Sempre me disseram que acordamos antes de morrer em sonhos, pois quem morre durante um sonho não volta a acordar. Eu morri neste sonho, será que não irei acordar? Claro que irei acordar, isto não passa de sabedoria popular, que nem se pode chamar sabedoria mas sim teoria popular sem qualquer tipo de bases cientificas.
Este sonho não tem piada, estou a ficar aborrecido, quero acordar só não quero acordar morto.
Pergunto-me se estarei num sonho a espera de acordar ou se o meu subconsciente me resolveu matar num sonho. Se o subconsciente controla os nossos sonhos e se acredita que morremos nesse sonho, não ira ele impedir que eu fique consciente? Ele certamente não vê qualquer motivo em me deixar acordar visto que morri. Espero que o meu subconsciente tenha um mínimo de consciência e me acorde.
Levaram o meu corpo, ou o corpo de alguém parecido comigo ou um outro eu que não eu, aqui, neste momento a pensar.
As pessoas começam a dispersar, a estrela da manha já abandonou o local, a vida volta ao normal. Todas estas pessoa parecem bem dispostas, nada como alguém morrer na nossa rua para animar uma multidão. Fazer uma manha fora do normal, ajudar a multidão a sair da monotonia e dar-lhes algo de que falar durante o fim-de-semana. Não precisam de agradecer, foi um prazer animar o vosso dia.
Estou sozinho, finalmente, a olhar para o local onde estive deitado. Tento compreender o que aconteceu e compreender porque motivo ainda não acordei.
FIM