O céu escuro adivinhava chuva embora esta ainda não caísse. As pedras da calçada negra e branca brilhavam com água que escorria dos beirais das casas altas, velhas, com a tinta caindo aos pedaços. O andar tornava-se escorregadio pelo desgaste das pedras misturada com alguns resquícios de folhas trazidas pelo vento e com os papéis vazios das saquetas de açúcar caídos das mesas das esplanadas, na sua maioria vazias. Aqui e ali, alguns resistentes sentados nas cadeiras metálicas ainda húmidas, das chuvas da noite. A sua maioria estrangeiros de visita à cidade, com os seus livrinhos turísticos procurando os pontos que estes indicavam como sendo os melhores. As ruas estavam semi-vazias de pessoas que iam e vinham, passando por ele como se fosse invisível. Os seus passos cautelosos, pela calçada molhada e pelo seu próprio esforço de se manter insonoro, contribuía para essa sua invisibilidade. Parecia que o seu pólo cinza escuro se confundia com o céu, os seus olhos escondidos pelo carapuço puxado para a fronte, não permitiam que alguém reparasse no brilho estranho dos seus olhos. Era apenas mais um na baixa da cidade, percorrendo o caminho para um destino que ninguém se importava em conhecer.
A praça, com o seu cheiro característico de castanhas assadas misturado com os dejectos das pombas que por ali passavam. Em frente à Igreja de Santa Cruz, um casal de turistas tirava uma fotografia à fachada, milhentas vezes fotografada. Ele entrou na igreja deixando-se envolver pela penumbra fria da pedra. Caminhou até meio e sentou-se num banco qualquer. Ainda de capuz e com as mãos nos bolsos, quem olhasse para ele apenas notaria os lábios mexendo-se ao ritmo de uma oração. Poucas pessoas andavam por ali. Mais há frente, uma mulher de idade ajoelhada com a face entre as mãos fazia a mesma coisa que ele. As portas da entrada rangeram à entrada de alguém, seguindo dos passos de uma mulher, pelo som dos saltos, batendo na pedra fustigada dos séculos. Parou de orar e concentrou-se nos passos que se aproximavam da sua direita pelo corredor. Passou por ele sem lhe dar qualquer importância, parando cinco bancos mais à frente sentando-se. Concentrou-se novamente na oração que fazia sempre de sentido alerta. As mãos nos bolsos acariciavam a lâmina fria de um punhal. Ele gostava daquela sensação do frio e da maciez do aço na sua pele dos dedos. Sentia o corpo arrepiado pelo frio da nave, mas era uma sensação que lhe agradava, deixando-o mais desperto. Os nervos retesado estavam alerta para o seu mundo sombrio. Poucos lhe conheciam os hábitos, que ele tão sagazmente tentava esconder.
Não era dado a sentimentos de pena, amor ou ódio. Não se sentia só nunca. Sentia-se talhado para estudar as pessoas e aniquilar. Nada mais nada menos que arrancar da vida cada uma das pessoas que lhe era destinada. Trabalhava a soldo e isso não o repugnava. Era assim que sentia que tinha que ser, sentindo um prazer quase orgásmico cada vez que que tirava a vida a alguém. Gostava do que fazia e isso fazia-o bom na sua "arte". Os dedos acariciavam ainda o punhal, a sua arma preferida. Feito por ele próprio, tinha demorado anos para o aperfeiçoar. Não queria que nada o ligasse exteriormente às armas que usava e isso tinha feito com que ele próprio construísse aquela arma.
A mulher que tinha entrado depois dele levantou-se e desceu pelo corredor. Ele baixou mais os olhos, ficando a ver apenas as pedras do chão imediatamente à sua direita. Ela passou e ele pode apenas a parte final das pernas. Deixou-se estar até os gonzos da porta rangerem outra vez e ele deixar de ouvir os passos. Levantou-se e saiu, caminhando com o mesmo cuidado de não ser ouvido. Cá fora a chuva começava a cair miudinha fazendo as poucas pessoas que passavam começarem a abrir os chapéus de chuva ou apressarem o passo se os não tivessem. Os turistas fugiram a abrigar-se. Olhando para a esquerda, viu pelas costas a mulher que tinha estado na igreja à sua frente, caminhando em passos lentos com o chapéu de chuva aberto. Vestia-se de preto, num conjunto de saia casaco de corte clássico, com uns cabelos loiros lisos escorrendo pelos ombros. Ele seguiu-a.
3 Devaneios
Pois que até eu, uma gaja vinda do Antártico, fiquei assim, meio tzzzzzzz.
Olá.
Nunca comentei neste blog, mas tenho seguido já alguns meses. Este poste despertou o meu desejo de comentar. Simplesmente fantástico o texto. Os detalhes permite-nos criar na nossa mente toda a história.
Mostra algo que todos nós fazemos, voluntariamente ou não: ignorar o mundo e as pessoas que estão à nossa volta.
Quantas são as vezes que passamos por mendigos e simplesmente desviamos a cara porque não queremos que nos peçam esmola ou por qualquer outro motivo.
Raramente fazemos o exercício de tentar olhar pelos olhos das outras pessoas que nos rodeiam. "E se eu fosse ele (a)?..."
Este texto diz muito mais que isto, mas esse foi um dois principais pontos que me despertou mais; a indiferença que temos e queremos ter.
Simplesmente fantástico o texto...:)
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