Por entre os cortinados de crepe pesados que eram o orgulho da minha bisavó Sofia consigo distinguir, até onde me permitem estas névoas que me cobrem os olhos cansados de tentar distinguir fantasmas de outras épocas das pessoas de carne e osso que de quando em quando me abastecem as necessidades vitais, as iluminações nas ruas, os sorrisos dos transeuntes, a alegria das crianças.
Cá dentro desta casa de sombras onde me escolhi enterrar em vida, aguilhoando-me com os passos que me perseguem e os sonhos que desfiz com estas mãos de velha, engelhadas, quando ainda tinham a pele fresca e rosada, de toque doce, cá dentro o Natal conta outras histórias, de dores que me trespassam agora este peito cansado das golfadas de ar que lhe entram a custo, como uma gaita-de-foles que projecta os seus últimos acordes.
Privilégio dos velhos que experimentaram vidas ricas em amor e as podem relembrar como fotografias gastas pelo uso em consolo dos seus últimos anos neste Mundo, esta minha memória prodigiosa tem o condão de me ser madrasta, porque me recorda apenas aquilo que não vivi, o gesto que não fiz, e me podia ter mudado a existência.
E nesta casa de espíritos brincalhões, que se escondem nas cortinas, sussurram entre os corredores, quebram as loiças da China nos armários e me estilhaçam os nervos de velha decrépita, a memória não me podia ser mais presente, mais real, a ponto de por vezes já não saber distinguir a época em que vivo e me ataviar com roupas de outrora, tomando chá com os meus fantasmas como se fosse, de verdade, um deles.
Mas daqui, desta mansão que já não sei se é minha ou se sou eu que lhe pertenço, como qualquer um destes móveis primorosamente esculpidos pelo meu bisavô, em sinal de amor pela sua jovem noiva, daqui só saio com os pés para a frente, os olhos cerrados de vez, as mãos em cruz no peito e a alma entregue a estes gulosos que ma cobiçam noites sem fim, tentando-me ao impronunciável.
Foi num Natal, sim, há tantos anos atrás que já lhes perdi a conta. Ou talvez seja ainda galanteria de velha, isto de não querer falar em datas, como se não se me adivinhassem nas rugas profundas no rosto e na ausência de vida nos gestos os anos que já carrego no corpo! Vaidade vã, que até agora te fazes sentir!
Dizia eu que foi num Natal que condenei a minha vida a esta insipidez vazia, tendo cedido à pressão de um pai autoritário e de uma mãe estritamente educada para manter as aparências sociais e uma vida sem mácula exterior que se lhe pudesse apontar. Cedi, sim, para vergonha dos anos de sanidade que me restam e desespero do coração que ali se me morreu nas mãos, estilhaçado por mim mesma.
Não tenho orgulho no que fiz, e sem dúvida alguma teria sempre a escolha de me libertar das correntes que me oprimiam... por isso vivi o resto da vida como um castigo, não dei filhos ao verdugo que para mim escolheram, entre as melhores famílias, que devia chamar de marido e que apenas na sua morte me libertou... mas escolhi continuar nesta casa de misérias humanas, falsidades e hipocrisia, para assim continuar a punir a minha falta.
A que te levou para longe de mim, meu grande e único amor.
A ti, que guardavas no teu olhar o brilho que só para ti tinham os meus lábios cor de rubi, de tanto os esfregar com os batons de tratamento de minha mãe.
A ti, que por breves e fugazes momentos me ensinaste que a Lua tinha um outro lado, de uma pureza virgem, inalterada por regras, coqueterias e comportamentos adquiridos à força do hábito, a ti a quem me dei por inteiro, por instinto, me reinventei todos os momentos em que me estreitavas nesse teu abraço que apagava tudo, e me adormecia os pecados.
A ti, que me conheceste o corpo antes de sequer ter tempo de to ensinar, como se me houvesses possuído noutras épocas, que me despias o espartilho e as meias de cetim com a delicadeza das tuas mãos amorosas, contando-me e recontando-me os sonhos que construías connosco. E que eu, cruelmente, desfiz. E me desfiz com eles.
Não te posso recordar, nesse último Natal em que os nossos amores proibidos foram descobertos, sem sentir como se fosse hoje aquele quebrar da vida quando me afastaram da tua boca aos gritos, por isso cada vez que se aproxima de mim o teu fantasma sei que morro uma vez mais em vida, como os teus olhos que perderam a cor naquele momento.
É Natal lá fora, tal como o era naquela época.
Depois disso, foi sempre Inverno na minha alma, foi sempre ausente o meu espírito, sempre frio o meu corpo, quando o meu carcereiro mo violava, conspurcando-o. Quando finalmente se decidiu a libertar-me desse castigo, uma vez que o meu ventre se empenhava em não se emprenhar de uma suposta prole que lhe daria prestígio social, foi só alívio o que senti, preferindo mil vezes o cheiro do perfume barato de mulher nas suas roupas do que aquele cavalgar que me magoava as entranhas.
Morri com o teu olhar, meu amor.
E os Natais perderam o vermelho, cor do coração que batia contigo...