Nos noticiários não se falava noutra coisa. Dos jornais, revistas, rádios, televisão, computadores vinham há mais de dois anos permanentes alertas sobre a falta de qualidade do ar, índices de humidade insatisfatórios, surtos de patologias cardíacas associadas a falta de capacidades respiratórias e, como por magia, milhões de descendentes de macacos começaram a cair como tordos. Era oficial, estávamos a poucas semanas de acabarmos todos. Tudo parecia um sonho mas quando acordávamos de manhã a triste verdade continuava a cercar tudo o que éramos, a roubar-nos o ar. A nós, os últimos humanos a povoar a Terra! Como é que chegámos a isto?
Não aguentava mais estar em casa. A imagem vã daquele cidadão que estava tão deprimido que nem tivera forças para ir levantar o prémio da lotaria, mergulhou os que restavam num pesado lodo de lágrimas e perguntas.
Então era a isto a que o fim se parecia! Estava tão próximo que finalmente dava para ver o seu rosto, o branco dos seus olhos, o hálito de quem governa absolutamente os destinos das gentes do mundo. E o nosso destino quase imediato mais não seria do que chorar, revirar dúvidas e poisar serenamente sobre a espera por uma falha cardíaca que simpaticamente nos fechasse as vistas com a mesma suavidade com que uma mãe as abre na origem.
A maior parte das pessoas ainda saudáveis desistiram dos seus empregos, e viviam os últimos dias a partir do lar, com os seus. Mas eu não. Preferi sair à rua e arrastar os meus ossos até à zona dos bares. Como a Paris de 1940, a meros dias - e depois horas, e depois segundos - da invasão Nazi, a zona dos bares estava cheia, rebentava pelas costuras. Quando estás a poucos dias do fim, o dinheiro deixa de ter a mesma importância. E a normalidade é um refúgio demasiado distante, que custa olhar de frente.
As ruas enchiam-se de formas de loucura. Não me apetecia beber mas também não me apetecia ficar em casa. Vi um anúncio de oferta de emprego (já poucos aceitavam trabalhar) numa casa de alterne e resolvi aceitar. Nem sei bem porquê. Seria a vontade de foder? Sim, claro. Mas também o "já nada mais importar". Nem sequer diria aos meus chefes na firma de contabilidade que não contassem mais comigo. Limitar-me-ía a não mais aparecer. E já agora ... contabilidade para quê? o que é que faltava contar? as árvores que atirámos abaixo e que nos deram durante milénios de inspirações e sombra? as águas que sujámos por imprecaução ou abuso? os outros habitantes do planeta a que negámos direito à vida? Mas também essas contas eram afinal polutas. Falhámos. Como raça. A todos e a nós próprios. Nada mais havia para contar.
À entrada da casa de alterne, que por acaso se chamava "Copacabana", deparo-me com uma manifestação de padres e afins que agitavam no ar nervosamente a Bíblia. Falavam em perdoar. Falavam no próximo mundo. Tivesse eu próprio forças, e batia-lhes como se não houvesse "o-amanhã-que-já-sei-que-não-vai-haver".
- Saiam da frente, vermes. Matámos o planeta, o planeta matou-nos a nós. Deixem lá Deus no seu canto sossegado. Já sabemos que foi o primeiro a abandonar esta terra... e foi o melhor que fez. Não há nada a fazer com gajos como nós! Se pudéssemos até Deus teríamos exterminado. Não há perdão nem para nós, nem para si Padre. O inferno vai descer à Terra para que finalmente haja paz. Percebe? Você e eu... somos o anti-Cristo, o cálice que Jesus afastou.
E assim me afastei eu, enquanto descia aquelas escadas para o perfume barato, reflectindo nas linhas que muitos séculos antes Victor Hugo redigira: "Si souffrir nous devons, souffrons sur les tailles"*. Talvez se tivéssemos dado mais atenção ao Natal noutros anos, o caminho se pudesse ter tornado, algures no processo, mais claro. Não o Natal das prendas e dos prazeres materiais, que esse é uma questão de cartão visa e dura o ano todo. Mas o Natal que nos relembra que estamos entregues a nós próprios, que depois de nós, como um todo, nada mais há que nos possa salvar. Um Natal que pressupõe darmos as mãos, nem que seja para saltarmos juntos e com amor sobre o penhasco do nada.
Lamentavelmente nesse ano o Natal chegou demasiado tarde, desprovido do que celebrar, e acompanhado apenas nas cidades vazias por uma perdida telefonia que ecoava sozinha e ad eterno velhas melodias da rádio.
* “Se temos que sofrer, então soframos nos limites” (tradução livre)"
Chamava-se Ines. Era uma pequena rapariguinha, pálida, escanzelada, adulta para os seus curtos catorze anos.
Estávamos no ano de 1945, numa linda noite de consoada, como há muito não se via na Alemanha. A rua estava calma e não se via vivalma. Vivia-se um ambiente de festa, cada família já enternecida no conforto do seu lar.
A de Ines já tinha jantado. Cansada, ainda arranjava tempo para preparar tudo para o dia seguinte, para pôr as prendas debaixo do pinheirinho enquanto deixava um copo com leite e um prato com três bolachas de aveia para quando o Pai Natal viesse.
Acabada tal tarefa, ela dirige-se para a cama, tentando lembrar-se de como era vivido aquele feriado há sete anos atrás, quando não havia preocupações, quando ela se divertia a explicar ao Maik que os cereais ficam melhores com leite quente, quando juntos pegavam nos lápis de cera e desenhavam mil e uma coisas nas paredes lá de casa. E do que a mãe sorria quando a via a correr atrás do seu irmão depois de ele fugir, ciente no mal que tinha feito ao tentar desenhar a sua irmã de pernas para o ar.
Deitou-se ao lado do Maik, o seu irmão, um pequenote de apenas dez anos, farrusco, cabelo desgrenhado e, tal como ela, branco como a neve. Ainda deu tempo para rezar baixinho ao menino Jesus a pedir um bom Natal para toda gente, principalmente para os que por algum infortúnio do destino não poderiam ter o melhor dos natais.
E adormeceu…
Estava uma manhã fria, as ruas estavam cobertas por uma fina camada de neve e já se ouvia algumas crianças a brincar na rua e a cantar conhecidas canções natalícias.
Acordou com o seu irmão aos pulos em cima da cama:
- Ines, Ines! Acorda! Olha o que o pai e a mãe me deram! Vai-se chamar Rolf, tal como o pai! – gritava ele efusivo, enquanto fantasiava mil e uma histórias com o seu novo fantoche, um daqueles feitos apenas com uma meia e dois botões.
- Toma! Abre agora a tua! Quero ver o que te deram a ti.
E Ines abriu a sua prenda, onde vinha também um fantoche. A mulher do Rolf. Era a outra meia, outros dois botões, mas tendo este um par de finos arames fazendo um lindo cabelo comprido ao seu fantoche.
- Bem… Se o teu se chama Rolf como o pai, então eu vou chamar Ester à minha, tal como a mãe. Olha só, o Pai Natal para além de ter deixado as prendas que os pais mandaram também deixou uma carta para nós. Deixa ler…
E numa folha suja, rasgada no canto e um pouco amassada podíamos ler:
“ Olá pequenos. Como estão? Espero que esteja tudo bem com vocês. Tens tomado bem conta da tua irmã, Maik? Ainda ontem estive com os vossos papás e eles dizem que estão com muitas saudades mas que estão quase a voltar para casa, para ao pé de vocês. Espero que gostem das prendas e que se divirtam muito a brincar com os fantoches.
Pai Natal”
Ines sorriu ternamente para Maik enquanto lhe desejava um feliz Natal:
- Anda, agora temos que ir. Hoje como é Natal, pode ser que as pessoas estejam generosas e corra bem.
E juntos, de mão dada, deixaram para trás o pequeno colchão e o despido pinheiro. Juntos, de mão dada, deixaram para trás aquele beco onde tentavam sobreviver. Juntos, de mão dada, foram percorrendo as ruas da cidade, vendo as outras crianças com brinquedos caros, abraçados aos seus pais, a brincar na neve. Juntos, de mão dada, deixaram para trás a família.
Juntos, de mão dada, foram enfrentar a dura realidade de serem órfãos com apenas catorze e dez anos.
Por entre os cortinados de crepe pesados que eram o orgulho da minha bisavó Sofia consigo distinguir, até onde me permitem estas névoas que me cobrem os olhos cansados de tentar distinguir fantasmas de outras épocas das pessoas de carne e osso que de quando em quando me abastecem as necessidades vitais, as iluminações nas ruas, os sorrisos dos transeuntes, a alegria das crianças.
Cá dentro desta casa de sombras onde me escolhi enterrar em vida, aguilhoando-me com os passos que me perseguem e os sonhos que desfiz com estas mãos de velha, engelhadas, quando ainda tinham a pele fresca e rosada, de toque doce, cá dentro o Natal conta outras histórias, de dores que me trespassam agora este peito cansado das golfadas de ar que lhe entram a custo, como uma gaita-de-foles que projecta os seus últimos acordes.
Privilégio dos velhos que experimentaram vidas ricas em amor e as podem relembrar como fotografias gastas pelo uso em consolo dos seus últimos anos neste Mundo, esta minha memória prodigiosa tem o condão de me ser madrasta, porque me recorda apenas aquilo que não vivi, o gesto que não fiz, e me podia ter mudado a existência.
E nesta casa de espíritos brincalhões, que se escondem nas cortinas, sussurram entre os corredores, quebram as loiças da China nos armários e me estilhaçam os nervos de velha decrépita, a memória não me podia ser mais presente, mais real, a ponto de por vezes já não saber distinguir a época em que vivo e me ataviar com roupas de outrora, tomando chá com os meus fantasmas como se fosse, de verdade, um deles.
Mas daqui, desta mansão que já não sei se é minha ou se sou eu que lhe pertenço, como qualquer um destes móveis primorosamente esculpidos pelo meu bisavô, em sinal de amor pela sua jovem noiva, daqui só saio com os pés para a frente, os olhos cerrados de vez, as mãos em cruz no peito e a alma entregue a estes gulosos que ma cobiçam noites sem fim, tentando-me ao impronunciável.
Foi num Natal, sim, há tantos anos atrás que já lhes perdi a conta. Ou talvez seja ainda galanteria de velha, isto de não querer falar em datas, como se não se me adivinhassem nas rugas profundas no rosto e na ausência de vida nos gestos os anos que já carrego no corpo! Vaidade vã, que até agora te fazes sentir!
Dizia eu que foi num Natal que condenei a minha vida a esta insipidez vazia, tendo cedido à pressão de um pai autoritário e de uma mãe estritamente educada para manter as aparências sociais e uma vida sem mácula exterior que se lhe pudesse apontar. Cedi, sim, para vergonha dos anos de sanidade que me restam e desespero do coração que ali se me morreu nas mãos, estilhaçado por mim mesma.
Não tenho orgulho no que fiz, e sem dúvida alguma teria sempre a escolha de me libertar das correntes que me oprimiam... por isso vivi o resto da vida como um castigo, não dei filhos ao verdugo que para mim escolheram, entre as melhores famílias, que devia chamar de marido e que apenas na sua morte me libertou... mas escolhi continuar nesta casa de misérias humanas, falsidades e hipocrisia, para assim continuar a punir a minha falta.
A que te levou para longe de mim, meu grande e único amor.
A ti, que guardavas no teu olhar o brilho que só para ti tinham os meus lábios cor de rubi, de tanto os esfregar com os batons de tratamento de minha mãe.
A ti, que por breves e fugazes momentos me ensinaste que a Lua tinha um outro lado, de uma pureza virgem, inalterada por regras, coqueterias e comportamentos adquiridos à força do hábito, a ti a quem me dei por inteiro, por instinto, me reinventei todos os momentos em que me estreitavas nesse teu abraço que apagava tudo, e me adormecia os pecados.
A ti, que me conheceste o corpo antes de sequer ter tempo de to ensinar, como se me houvesses possuído noutras épocas, que me despias o espartilho e as meias de cetim com a delicadeza das tuas mãos amorosas, contando-me e recontando-me os sonhos que construías connosco. E que eu, cruelmente, desfiz. E me desfiz com eles.
Não te posso recordar, nesse último Natal em que os nossos amores proibidos foram descobertos, sem sentir como se fosse hoje aquele quebrar da vida quando me afastaram da tua boca aos gritos, por isso cada vez que se aproxima de mim o teu fantasma sei que morro uma vez mais em vida, como os teus olhos que perderam a cor naquele momento.
É Natal lá fora, tal como o era naquela época.
Depois disso, foi sempre Inverno na minha alma, foi sempre ausente o meu espírito, sempre frio o meu corpo, quando o meu carcereiro mo violava, conspurcando-o. Quando finalmente se decidiu a libertar-me desse castigo, uma vez que o meu ventre se empenhava em não se emprenhar de uma suposta prole que lhe daria prestígio social, foi só alívio o que senti, preferindo mil vezes o cheiro do perfume barato de mulher nas suas roupas do que aquele cavalgar que me magoava as entranhas.
Morri com o teu olhar, meu amor.
E os Natais perderam o vermelho, cor do coração que batia contigo...
Sentei-me na mesa mais isolada daquele café. Tenho de aproveitar o tempo que tenho, hoje fecha tudo mais cedo. E nesta mesa, apesar de não estar com ninguém, tenho a oportunidade de ver movimento, de estar com pessoas, de adiar o vazio que é estar só num apartamento, a sofrer em solidão. Enquanto posso adiar esse momento, mantenho-me por aqui. Sinto o travo do café, e deixo fluir a minha cabeça nas palavras que escrevo no meu caderno. Vejo a azáfama à minha volta, as últimas compras, as de última hora que não se fizeram com tempo. Vejo um quotidiano alterado pelas festas natalícias. Tudo me soa a distante. Não consegui ainda descobrir a fórmula de aproveitar os dias festivos depois de sucessivos azares e desgraças. Ainda para mais sozinho, partilhando comigo mesmo, de uma forma um pouco demente, todos os problemas que me afectam. Fechou o café. Tenho que sair. Encontro-me de novo no espaço em que não queria estar. Sofro, e choro na companhia de música e solidão. Enquanto lá fora se distribuem presentes, fico por casa a colocar esta tristeza na inspiração e escrevo até perder forças e adormecer. Feliz Natal.
Já alguma vez ouviste o frio? Não o sibilar do vento. Nem sequer o som de pisar a neve, quando a há. Mas sim o som do próprio frio. Não há vento, não há barulho. Só o frio?
Já alguma vez ouviste o Natal? Não os barulhos do trânsito na cidade. Não os sinos a tocarem nem as canções que se ouvem na rua e nas lojas. Nem mesmo o riso das crianças quando abrem os presentes. Mas o Natal?
Já estiveste sozinho, sentado, a ouvir o silêncio, pacientemente, sem deixar que a tua mente corresse para as obrigações que o Natal traz?
Se já o fizeste, provavelmente sentiste o pulsar da Humanidade a bater no teu coração.
Se calhar sentiste uma torrente de Amor por todos os teus Irmãos e Irmãs. Uma suave sensação de Unidade com todas as criaturas.
No silêncio de uma noite fria, sustem a respiração e escuta intensamente. E talvez ouças o frio.
Sereno, sozinho, concentrado, ouve o silêncio no teu coração. E talvez ouças o Natal.
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