Tirou os sapatos e entrou, já bastava a eventualidade de ser apanhada ali pela avó, se para cúmulo ela a encontrasse com os sapatos calçados, bem…. Nem queria pensar! Encostou as portas sem as fechar completamente e deixou-se ficar ali, imersa na semi-obscuridade e em todos os odores que a rodeavam.
Entreteve-se a identificar os cheiros, o mais forte e pungente, naftalina claro… toda a casa estava impregnada pelo cheiro. Ficava sempre com a sensação, de cada vez que lá ia, que o cheiro a naftalina se lhe colava à pele e demorava vários dias e imensos banhos até se sentir livre do odor. A mãe dizia que tinha tudo a ver com o processo olfactivo, um cheiro assim tão intenso deixava uma marca fortíssima no hipotálamo, o que nos dava a sensação de continuar a sentir determinado cheiro muito tempo depois de este já se ter dissipado.
No entanto, apesar da presença fortíssima desse cheiro, conseguia sentir outros: lavanda, rosmaninho, hortelã, alecrim, canela. Identificava-os facilmente, tinha passado as férias da Páscoa em casa da avó, e entreteve-se durante as tardes a colher as plantas do jardim, supervisionada pela avó, que lhe ia dizendo o nome de cada uma. Para depois fazerem raminhos que secavam ao sol e usavam para perfumar as gavetas e arcas onde a avó guardava cuidadosamente aquilo que chamava as suas limpezas. Peças de linho imaculadamente brancas e ricamente bordadas que estavam já destinadas a fazerem parte dos enxovais dos netos.
Misturado com todos os outros cheiros e de tal forma indelével que se não estivesse absolutamente concentrada não o teria sentido, um outro cheiro, que não conseguiu identificar mas que associou ao cheiro do cachimbo do pai.
Tabaco, aqui? Estranho…..
Começou a remover cuidadosamente as peças de linho, tentando encontrar a fonte do odor. Os dedos tocaram em algo que lhe pareceu uma caixa de madeira. Pegou-lhe e colocou-a perto da porta por onde entrava uma réstia de luz. Estava curiosa, o cheiro vinha sem dúvida dali, e era agora mais forte. O que levaria a avó a esconder uma caixa de tabaco no meio das roupas, num armário habitualmente fechado à chave. A ideia da avó a fumar um cachimbo às escondidas, provocou-lhe um ataque de riso que tratou de sufocar com ambas as mãos, para que não se denunciasse.
A caixa felizmente não estava fechada à chave, e se em alguma altura serviu para guardar tabaco, não era esse o seu conteúdo agora. Cartas, várias, num papel fino, com a escrita já bastante desbotada mas ainda perceptível.
Curiosa como era, nem tentou resistir e começou a ler uma delas, estava datada de 1917, e começava com um “Meu Amor”. Supôs imediatamente que fossem cartas do avô para a avó, e achou extremamente romântico. Mas pensando melhor, isso não fazia sentido, desde que se conheceram, os dois nunca estiveram separados um único dia, até ao dia em que Deus o levou, como dizia a avó com ternura e sempre com as lágrimas nos olhos. Para além disso, tanto quanto sabia, o avô nunca aprendera a escrever, sendo o filho mais velho e tendo começado a trabalhar logo que tinha força suficiente para segurar uma enxada, nunca houve tempo para a escola. De quem seriam as cartas? E para quem?
A voz da prima que a chamava sobressaltou-a, já tinham desistido do jogo e esperavam-na para lanchar. Apressou-se a pôr as cartas de volta na caixa e fez os possíveis para colocar a caixa exactamente no mesmo lugar. Saiu do armário contrariada e prometeu a si mesma abordar o assunto com a avó mal tivesse oportunidade.