Ausência: Presente  

Posted by A Mor..


Estou sentada na cama, encostada na cabeceira e ele dorme no meu colo. Estamos suados e seu cabelo invade minhas pernas e se mistura com minha respiração.
Não sei porque me sinto em paz. Sou uma mulher de guerra e ainda um pouco eu dominava esse cara, meu homem, tão indefeso, tão só meu agora que descobri porque me sinto em paz.
Ainda estou molhada, ainda estou pronta pra boca dele - ainda tenho fome.
Esse lobo deitado em mim, esse poço de carinho, afeto, palavras e fome - que me olha   o tempo todo com se tivesse medo que eu desaparecesse, esse cara me completa e eu não quero ser completa.
Eu quero a ausência dele, do cheiro, do olhar, da força dele me pegando. Eu quero me olhar no espelho e não ver ele.
Porque é por isso que ele me ama e sempre volta: porque eu não preciso dele. Dorme, meu lobo.


Dorme!

O armário  

Posted by Anónimo

Era um armário antigo. Pesado, feito de cedro rosa, enviado do Brasil há muitos anos pelo bisavô como presente de casamento da filha mais nova.A avô conservava-o com esmero, a única recordação do pai que emigrara para o Brasil quando ela era ainda um bébé de colo e nunca mais voltara.
Ficava no quarto das traseiras, perdera o lugar de destaque no quarto da avó em favor de móveis mais modernos e funcionais.
Mais de meio século depois, no interior ainda se sentia o cheiro adocicado e levemente acre do cedro. Deu-se conta disso numa tarde em que brincava às escondidas com os primos. O armário, habitualmente fechado à chave, sabia-o porque já tinha tentado abri-lo noutras ocasiões, tinha as portas abertas naquele dia, certamente para arejar as roupas que a avó guardava ali.
Tirou os sapatos e entrou, já bastava a eventualidade de ser apanhada ali pela avó, se para cúmulo ela a encontrasse com os sapatos calçados, bem…. Nem queria pensar! Encostou as portas sem as fechar completamente e deixou-se ficar ali, imersa na semi-obscuridade e em todos os odores que a rodeavam.
Entreteve-se a identificar os cheiros, o mais forte e pungente, naftalina claro… toda a casa estava impregnada pelo cheiro. Ficava sempre com a sensação, de cada vez que lá ia, que o cheiro a naftalina se lhe colava à pele e demorava vários dias e imensos banhos até se sentir livre do odor. A mãe dizia que tinha tudo a ver com o processo olfactivo, um cheiro assim tão intenso deixava uma marca fortíssima no hipotálamo, o que nos dava a sensação de continuar a sentir determinado cheiro muito tempo depois de este já se ter dissipado.
No entanto, apesar da presença fortíssima desse cheiro, conseguia sentir outros: lavanda, rosmaninho, hortelã, alecrim, canela. Identificava-os facilmente, tinha passado as férias da Páscoa em casa da avó, e entreteve-se durante as tardes a colher as plantas do jardim, supervisionada pela avó, que lhe ia dizendo o nome de cada uma. Para depois fazerem raminhos que secavam ao sol e usavam para perfumar as gavetas e arcas onde a avó guardava cuidadosamente aquilo que chamava as suas limpezas. Peças de linho imaculadamente brancas e ricamente bordadas que estavam já destinadas a fazerem parte dos enxovais dos netos.
Misturado com todos os outros cheiros e de tal forma indelével que se não estivesse absolutamente concentrada não o teria sentido, um outro cheiro, que não conseguiu identificar mas que associou ao cheiro do cachimbo do pai.
Tabaco, aqui? Estranho…..
Começou a remover cuidadosamente as peças de linho, tentando encontrar a fonte do odor. Os dedos tocaram em algo que lhe pareceu uma caixa de madeira. Pegou-lhe e colocou-a perto da porta por onde entrava uma réstia de luz. Estava curiosa, o cheiro vinha sem dúvida dali, e era agora mais forte. O que levaria a avó a esconder uma caixa de tabaco no meio das roupas, num armário habitualmente fechado à chave. A ideia da avó a fumar um cachimbo às escondidas, provocou-lhe um ataque de riso que tratou de sufocar com ambas as mãos, para que não se denunciasse.
A caixa felizmente não estava fechada à chave, e se em alguma altura serviu para guardar tabaco, não era esse o seu conteúdo agora. Cartas, várias, num papel fino, com a escrita já bastante desbotada mas ainda perceptível.
Curiosa como era, nem tentou resistir e começou a ler uma delas, estava datada de 1917, e começava com um “Meu Amor”. Supôs imediatamente que fossem cartas do avô para a avó, e achou extremamente romântico. Mas pensando melhor, isso não fazia sentido, desde que se conheceram, os dois nunca estiveram separados um único dia, até ao dia em que Deus o levou, como dizia a avó com ternura e sempre com as lágrimas nos olhos. Para além disso, tanto quanto sabia, o avô nunca aprendera a escrever, sendo o filho mais velho e tendo começado a trabalhar logo que tinha força suficiente para segurar uma enxada, nunca houve tempo para a escola. De quem seriam as cartas? E para quem?
A voz da prima que a chamava sobressaltou-a, já tinham desistido do jogo e esperavam-na para lanchar. Apressou-se a pôr as cartas de volta na caixa e fez os possíveis para colocar a caixa exactamente no mesmo lugar. Saiu do armário contrariada e prometeu a si mesma abordar o assunto com a avó mal tivesse oportunidade.

Diário da Terra  

Posted by Bruno Fehr in

„A liberdade foi o que de pior nos aconteceu“, foi isso que o meu capitão me disse assim que as primeiras bombas começaram a cair. „Dá-te por feliz por estares em Portugal pois os mais fortes são sempre os primeiros a cair“.
Pelas noticias vindas dos nossos aliados Europeus, a Ucrânia era neste momento o inferno na Terra onde 90% dos forças Bálticas, Polacas, Ucranianas foram dizimadas. No continente Americano as forças do sul e centro apoiadas pelos Chineses empurraram o exército Norte Americano quase até à fronteira do Canadá onde já se encontravam 5 regimentos Russos e estando o oceano pacifico a ser controlado pelo Japão e Índia a única rota de fuga era o oceano Atlântico, rota essa que traria a guerra para a Europa ocidental.

Só nos EUA 28 milhões de soldados e 55 milhões de civis perderam a vida. Portugal era agora a porta de entrada na Europa de 25 milhões de refugiados. Toda a costa portuguesa estava “minada” do que restava da armada Norte Americana.
No oceano atlântico encontrava-se toda a frota marítima Britânica, Francesa e Alemã com o objectivo de parar qualquer ataque vindo por mar, ao passo que a força aérea e terrestre da União Europeia estava centrada num corredor que se estendia de Berlim a Bucareste.

As palavras do meu capitão estavam em parte certas. A liberdade permitia-nos fazer e dizer o que queríamos, viver onde queríamos e foi dessa liberdade, ou ideia de liberdade, que nasceu a nossa arrogância alimentada pelo poder que por sua vez aliada às pressões comerciais e politicas que impúnhamos ao Médio Oriente, Ásia, América do Sul, África e Rússia deixámos, sem querer, que fosse criado um governo tirano que nos impunha uma falsa noção de liberdade fragilizada pelas cedências constantes de liberdades em troca de um falso sentimento de segurança, enquanto nos guiavam para uma guerra que só as elites loucas pensavam poder vencer.

Apesar de Norte Americanos e Chineses terem usado armamento nuclear, a aliança Indo-asiática não o tinham ainda usado contra a Europa, que vivia sob um ultimato de rendição.
Era uma questão de tempo até a Europa cair mas mesmo vivendo no chaos, o exercito e povo olhavam para as elites politicas que nos tinham arrastado para esta guerra em busca de respostas, de orientação, de soluções, e de lá nada vinha a não ser a constante propaganda orgulhosa que apelava ao nacionalismo mesmo que as nações estivessem em ruínas. Ainda assim o povo lutava, não pelo país, não pelas suas casas já destruídas mas pelas suas famílias. O que é uma nação senão um aglomerado de famílias? As nossas famílias!
A Turquia abandonou a sua posição neutral e entrou na Europa pela Grécia. A Argélia e união Africana invadiram a Itália e num acto de desespero a Europa lançou ICBM's sobre as principais cidades Turcas e Norte Africanas e foi impossível parar a multiplicação de explosões “cogumelo” um pouco por toda a Europa. Falava-se no fim da guerra. Mas como pode uma guerra ter fim se as elites que a alimentam estão vivas e de saúde exiladas na Escandinávia? Gozando da pseudo-neutralidade da união FiNorSe (Finlândia, Noruega, Suécia). Todos nós, soldados, sabíamos que a guerra não tinha terminado, sabíamos que após este inverno nuclear, os sobreviventes voltariam a guerrear-se mesmo que já ninguém soubesse porque lutava, mesmo que todos soubéssemos que estávamos no limiar do fim dos tempos. Um Apocalipse humano, um suicídio colectivo sem intervenção divina. Deus se existe, há muito que virou costas à pior das suas criações e nenhum homem ou mulher olhava para o céu à espera de intervenção divina, olhavam sim no desejo não ver mais uma chuva explosiva.

Fumo o meu último cigarro que no meio do cheiro nauseabundo a morte e químicos é o que de mais saudável os meus pulmões conhecem. Mesmo assim, decido deixar de fumar.

(excerto de Teanaris - Livro Terra)

O inicio  

Posted by LBJ in


Foi uns dias antes de tudo começar. Lembro-me de ter aberto os olhos incomodado pela luz do Sol que já ia alto e só ver verde em toda a minha volta e eu até gostava do conforto daquele verde e do cheiro da erva ainda um pouco húmida do orvalho da noite. Se hoje tenho saudades desses tempos simples em que nada acontecia, naquele dia recordo que acordei resmungão e a lamentar a monotonia de mais um dia em que nada de extraordinário ia acontecer e que o meu maior desejo era que algo extraordinário acontecesse. Naquele dia nada de extraordinário aconteceu ou pelo menos eu não reparei que algo extraordinário tivesse acontecido, mas estranhei uma revoada de pássaros lá longe sobre o pinhal que desce da colina dos arcos até ao regueiro da família Síldio e um estrondo oriundo de parte incerta que se foi esvaindo até se tornar um silvo e desaparecer.

Escusado será dizer que ninguém na nossa comunidade ligou alguma importância àquilo, tirando eu que era visto como um bicho irrequieto e trafulha e à espera de sarilhos apenas o Zoldi Ouriço conhecido por começar a mastigar bagas azuis logo que se levantava e a meio da manhã já andar a trombadar pelos caminhos, comentou que vinha ai coisa ruim e que o melhor era começar a encher a despensa. Recordo-me também que foi nesse dia que ganhei coragem para me aproximar sorrateiro do lago da fonte Castanha e espreitar o pêlo a luzir de gotas de água da Riú enquanto tomava banho…

Árvore  

Posted by M. Morstan in

A carta levou-me ali. À minha primeira pista. Não muito alta, mas de tronco grosso e copa larga, a árvore erguia-se no alto de uma colina verdejante. Parei a contemplá-la. Quantos anos teria, interroguei-me. Cem? Duzentos? Mil? Parecia antiga, de tão grandiosa que era. Aproximei-me. Dei uma volta ao tronco. Depois outra. E ainda outra. Parei. Descalcei-me. Estendi os braços, abracei a árvore e encostei a orelha esquerda à casca. Fechei os olhos e respirei fundo. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Deixei de me sentir e passei a senti-la. A árvore é um ser vivo. A árvore tem um coração. Não um coração como o meu, mas um coração que pulsa. E esta árvore tinha um pulsar vibrante. Encostada à árvore, consegui sentir o seu ritmo vital. A certa altura comecei a sentir o pulsar da Terra, por baixo dos meus pés nús. O meu coração desacelerou até ao compasso do vibrar da árvore e do pulsar da Terra. Em sincronia. Deixei-me ficar assim durante uns momentos. Eu, a árvore e a Terra tornámo-nos num único ser. Em sintonia. O tempo à nossa volta parou. O espaço à nossa volta desapareceu. Só nós as três. Eu, a árvore e a Terra. Abri os olhos e ainda abraçada à árvore olhei para cima. Por entre as diferentes tonalidades de verde das folhas, os raios de Sol passavam, filtrados. Uma luz quente aqueceu-me a cara e a alma. Virei-me de costas. Afastei-me da árvore. Primeiro devagar, depois mais depressa. Corri. Sem olhar para trás uma única vez. Deixei a árvore no alto da colina. Compreendi a minha primeira pista. E reli a carta.

Maresia na alma  

Posted by Mag

“Meu amor,

Escrevo-te para espantar os fantasmas que me volteiam nas sombras deste mar de espuma que parece não ter fim, e para deixar testemunho escrito desta minha passagem por este mundo que ainda me faz abrir a boca de espanto e temor tantas vezes, para que não se perca o registo desta minha existência, que agora me parece triste e sem sentido, depois de ma teres povoado de beijos e alegrias.

Não vejo, como nos livros de histórias, fim, no horizonte, neste rugir ondulante que o barco conquista a cada novo dia de rumar, antes se me confunde o olhar entre os azuis do céu e da maresia, e acabo por me sentir como se sepultada em vida, neste destino que me foi decidido, firmado e sem espaço para rogos e revogações, por outrem, que sem piedade se fez dono e senhor dos meus passos.

Ainda me ecoam nos ouvidos as palavras chicoteadas pelos lábios de meu pai, ainda as vejo a brilhar-lhe nos olhos, as lágrimas silenciosas, rogos impotentes de clemência que bailam nos olhos azuis da minha mãe, ainda tenho o cheiro acre do medo na pele, não por mim, que sempre me soube capaz de alhear às piores fúrias daquele que me gerou, mas por ti, meu amor, por te saber perdido nas bocas do povo, a honra lavada na lama dos passeios, a saída menos que honrosa de um afastamento sumário do posto de coronel que tão justa e brilhantemente ocupavas e te roubei, de um só suspiro, em troca de um amor que não se esgota no vento, nem nas palavras, nem no sabor da tua pele na minha!

Se é crime amar assim, sentindo ainda o teu abraço fervente e os teus lábios mergulhados no meu peito, se é pecado dar-te o meu corpo virgem de vícios e outros amores clandestinos, agora prenho deste orgulho que me preenche, por ter sido tua e percebê-lo neste ventre que qualquer dia me será difícil esconder à tripulação (que será de mim, depois? Atirar-me-ão ao mar, sem piedade?), se é condenável saber-nos um só mesmo que com este oceano que nos puseram de distância, apenas porque não sou tua mulher de matrimónio, então, meu amor… então… sou criminosa, e que Deus apenas me venha julgar! Porque deste crime não estou arrependida, não rezarei Avé-Marias nem me ajoelharei perante um altar numa qualquer Igreja simulando, como tantas senhoras bem-casadas (ou assim se dizem) fazem, que com meia dúzia de Padre Nossos se limpam as contas do rosário que todos teremos um dia que assinar ao chegar à nossa morada final!

Não, eu se pudesse calava com os teus beijos este vento que não se cansa de me soprar no peito desde que lançou âncora esta prisão que me levará àquele que será o meu sepulcro para o resto dos meus dias.

Mas talvez não seja vento já o que me ecoa no peito, talvez seja afinal o vento que me revolteia nos cabelos que não consigo disciplinar por debaixo do hábito que me fizeram já vestir, negro como convém a uma mulher perdida na minha situação, sem outro destino que não o tornar-se noiva de Deus. Será que Deus quer esta noiva que ama a outro, que ama a um homem de carne e osso? Aos meus juízes não importa se tenho vocação e alma para noviça…

Mas o vento, falava do vento…. Sabes, meu amor, às vezes é difícil organizar os pensamentos, parece que se perde o sentido nesta viagem desterrada… e combato uma vontade irracional e imperiosa que me assalta, por vezes, de súbito e como um ladrão no escuro, de me lançar nestas ondas que fustigam o casco da embarcação… mas não temas, meu amor, sabes que sei ser o dedo do Outro que me tenta, e não cedo facilmente às angústias com que me quer inebriar a mente! Sabes-me forte, esta tua fêmea (como gostavas de me chamar), sabes que não me deixarei domar facilmente… até tu, que eu soube ser, desde o primeiro olhar trocado, o meu destino, precisaste de muita astúcia para me chegar ao corpo!

O vento esta noite foi impiedoso, cantou-me na janela com a sua voz triste até me pôr os nervos em ponto de caramelo, como as tartes que me ensinou a tia Maria, a minha tia preferida, a fazer. Já há dias que não nos larga, talvez seja um castigo acrescido com que o meu pai nem sequer contou, mas que me soa a tormenta no espírito quebrantado! Sabes como sou sensível ao vento, meu amor, como me impede de pensar, de coordenar as ideias dispersas, como me enche o peito de lágrimas que não solto por puro orgulho! Não me vergarei, venha o Levante que o meu corpo pode oscilar como cana de bambu mas a alma, essa, encastelará nas paredes do seu quarto até que se canse de soprar este bandido!

Estou emparedada em vida neste mundo masculino e rude de pescadores, com olhares libidinosos que me despem aquilo que as vestes escuras tentam, em vão, esconder. Pois se a cada dia me crescem os seios, preparando-se para a maternidade com que me abençoaste, e me arredondam as formas, é-me difícil ocultar o corpo assim pleno ao desejo alheio, que no entanto desprezo. É a ti que quero hoje e sempre, meu amor, e só queria que pudesses passar os teus dedos morenos neste ventre que alimenta a parte de ti que me restou…

Não desisti ainda de viver, sabes? Atiraram-me para aqui, mas hei-de arranjar forma de me escapulir, quando a vigilância apertada da matrona que me foi contratada como carcereira se desleixar um pouco, talvez em terra… Não sei o que farei, ainda, mas… isto não é viver.

Nem com o fraco consolo destas palavras deitadas ao mar, nem com as doces e longínquas (quase que fugazes, já) lembranças dos nossos amores proibidos em campos naufragados de morangos, que se desfaziam em sumo na boca…

Esta que foi (só) tua, e que, com a força de Deus, voltará a ser, despede-se agora… a maresia transtorna-me os enjoos que a tua filha (sim, sinto que teremos uma menina) me faz passar… preciso descansar o corpo magoado… até breve, meu amor.”