“Meu amor,
Escrevo-te para espantar os fantasmas que me volteiam nas sombras deste mar de espuma que parece não ter fim, e para deixar testemunho escrito desta minha passagem por este mundo que ainda me faz abrir a boca de espanto e temor tantas vezes, para que não se perca o registo desta minha existência, que agora me parece triste e sem sentido, depois de ma teres povoado de beijos e alegrias.
Não vejo, como nos livros de histórias, fim, no horizonte, neste rugir ondulante que o barco conquista a cada novo dia de rumar, antes se me confunde o olhar entre os azuis do céu e da maresia, e acabo por me sentir como se sepultada em vida, neste destino que me foi decidido, firmado e sem espaço para rogos e revogações, por outrem, que sem piedade se fez dono e senhor dos meus passos.
Ainda me ecoam nos ouvidos as palavras chicoteadas pelos lábios de meu pai, ainda as vejo a brilhar-lhe nos olhos, as lágrimas silenciosas, rogos impotentes de clemência que bailam nos olhos azuis da minha mãe, ainda tenho o cheiro acre do medo na pele, não por mim, que sempre me soube capaz de alhear às piores fúrias daquele que me gerou, mas por ti, meu amor, por te saber perdido nas bocas do povo, a honra lavada na lama dos passeios, a saída menos que honrosa de um afastamento sumário do posto de coronel que tão justa e brilhantemente ocupavas e te roubei, de um só suspiro, em troca de um amor que não se esgota no vento, nem nas palavras, nem no sabor da tua pele na minha!
Se é crime amar assim, sentindo ainda o teu abraço fervente e os teus lábios mergulhados no meu peito, se é pecado dar-te o meu corpo virgem de vícios e outros amores clandestinos, agora prenho deste orgulho que me preenche, por ter sido tua e percebê-lo neste ventre que qualquer dia me será difícil esconder à tripulação (que será de mim, depois? Atirar-me-ão ao mar, sem piedade?), se é condenável saber-nos um só mesmo que com este oceano que nos puseram de distância, apenas porque não sou tua mulher de matrimónio, então, meu amor… então… sou criminosa, e que Deus apenas me venha julgar! Porque deste crime não estou arrependida, não rezarei Avé-Marias nem me ajoelharei perante um altar numa qualquer Igreja simulando, como tantas senhoras bem-casadas (ou assim se dizem) fazem, que com meia dúzia de Padre Nossos se limpam as contas do rosário que todos teremos um dia que assinar ao chegar à nossa morada final!
Não, eu se pudesse calava com os teus beijos este vento que não se cansa de me soprar no peito desde que lançou âncora esta prisão que me levará àquele que será o meu sepulcro para o resto dos meus dias.
Mas talvez não seja vento já o que me ecoa no peito, talvez seja afinal o vento que me revolteia nos cabelos que não consigo disciplinar por debaixo do hábito que me fizeram já vestir, negro como convém a uma mulher perdida na minha situação, sem outro destino que não o tornar-se noiva de Deus. Será que Deus quer esta noiva que ama a outro, que ama a um homem de carne e osso? Aos meus juízes não importa se tenho vocação e alma para noviça…
Mas o vento, falava do vento…. Sabes, meu amor, às vezes é difícil organizar os pensamentos, parece que se perde o sentido nesta viagem desterrada… e combato uma vontade irracional e imperiosa que me assalta, por vezes, de súbito e como um ladrão no escuro, de me lançar nestas ondas que fustigam o casco da embarcação… mas não temas, meu amor, sabes que sei ser o dedo do Outro que me tenta, e não cedo facilmente às angústias com que me quer inebriar a mente! Sabes-me forte, esta tua fêmea (como gostavas de me chamar), sabes que não me deixarei domar facilmente… até tu, que eu soube ser, desde o primeiro olhar trocado, o meu destino, precisaste de muita astúcia para me chegar ao corpo!
O vento esta noite foi impiedoso, cantou-me na janela com a sua voz triste até me pôr os nervos em ponto de caramelo, como as tartes que me ensinou a tia Maria, a minha tia preferida, a fazer. Já há dias que não nos larga, talvez seja um castigo acrescido com que o meu pai nem sequer contou, mas que me soa a tormenta no espírito quebrantado! Sabes como sou sensível ao vento, meu amor, como me impede de pensar, de coordenar as ideias dispersas, como me enche o peito de lágrimas que não solto por puro orgulho! Não me vergarei, venha o Levante que o meu corpo pode oscilar como cana de bambu mas a alma, essa, encastelará nas paredes do seu quarto até que se canse de soprar este bandido!
Estou emparedada em vida neste mundo masculino e rude de pescadores, com olhares libidinosos que me despem aquilo que as vestes escuras tentam, em vão, esconder. Pois se a cada dia me crescem os seios, preparando-se para a maternidade com que me abençoaste, e me arredondam as formas, é-me difícil ocultar o corpo assim pleno ao desejo alheio, que no entanto desprezo. É a ti que quero hoje e sempre, meu amor, e só queria que pudesses passar os teus dedos morenos neste ventre que alimenta a parte de ti que me restou…
Não desisti ainda de viver, sabes? Atiraram-me para aqui, mas hei-de arranjar forma de me escapulir, quando a vigilância apertada da matrona que me foi contratada como carcereira se desleixar um pouco, talvez em terra… Não sei o que farei, ainda, mas… isto não é viver.
Nem com o fraco consolo destas palavras deitadas ao mar, nem com as doces e longínquas (quase que fugazes, já) lembranças dos nossos amores proibidos em campos naufragados de morangos, que se desfaziam em sumo na boca…
Esta que foi (só) tua, e que, com a força de Deus, voltará a ser, despede-se agora… a maresia transtorna-me os enjoos que a tua filha (sim, sinto que teremos uma menina) me faz passar… preciso descansar o corpo magoado… até breve, meu amor.”