Hoje sou abstracto na escrita e uso a palavra porque não sou firme no risco nem hábil no cinzel. Falo de uma rosa sem pétalas nem cheiro que se secou debaixo de um Sol que não se vê sobre as nuvens que não choram chuva porque são brancas como a imaginação de um sonhador de castiçais ou de um pasteleiro de bolos de sal e barro salobro e de uma menina de saia de vento que sopra balões de sabão sentada numa cadeira a quem lhe falta uma perna.
Debaixo do manto da noite esconde-se o némesis do medo apenas reflectido em charcos de água negra ou visível sobre a forma de sombras difusas que me fogem por becos de ruas que já não existem e onde já não há velhas à janela a invejar o par de namorados que se beija numa esquina ou o homem triste que fuma o último cigarro do maço amachucado e jogado ao chão.
Se todo o saber se puder concentrar num ponto fulcral e da ignorância se fizer alavanca qualquer vontade poderá içar a incerteza à altura da dúvida. O amor e o ódio medem-se pela mesma quantidade de letras e são ambos insignificantes em tamanho e tamanhos em significado e fazem-se oscilantes entre o amor que odeio e o ódio que amo.
Romanceio a vida de alguém que ainda não conheci porque hoje não saí deste quarto que não tem portas nem janelas nem há luz além daquela que trouxe comigo e sei que sou incómodo e que estas palavras sabem a um gosto azedo na ponta da língua se lidas em voz alta e que arrepiam a base da nuca se lidas sem som tal como a morte que paciente nos espera sem a sabermos fruto negro ou caminho de mel.
Hoje fui abstracto na escrita e usei a palavra porque não pude ser firme no risco nem hábil no cinzel e queria apenas um dia ser guerreiro armado da mais poderosa palavra que usarei redonda na defesa e afiada na estocada, assim o prometo assim o comprometo assim me submeto.