Saltou por cima da corda suspensa entre dois troncos de madeira, a corda bamba estremeceu quando lhe tocou com a ponta do pé, a corda bamba como a sua vida, estremeceu como estremecia a sua vontade de continuar em frente. Ontem como hoje como amanhã tentaria fazer este caminho, festejando como objectivo alcançado, cada metro, cada passo a mais que na véspera. Por vezes recaia, voltava para trás mais cedo, mais longe.
O próximo passo fazia-o chegar à esquina e de lá conseguiria já vê-lo, pleno, suave, fascinante, o retomar de um sonho perdido e desejado no complexo labirinto que se tornara a sua cabeça, uma arquitectura de ignorante louco na forma com que os seus neurónios se organizaram. Parou e hesitou, o ângulo frio das paredes protegia-o ainda, um passo mais… Um passo mais e conseguiria vê-lo e desta vez não iria ficar torpe pela visão, desta vez iria continuar, mas os pés não lhe obedeceram, ficaram ali imóveis agarrados às pernas, como se os músculos num repente se tivessem desligado de qualquer linha de comando.
Teimou e conseguiu avançar e dobrou a esquina e fechou os olhos, não queria que o choque da visão o fizesse parar e na escuridão do seu interior veio-lhe à memória aquele dia longínquo, os risos de criança excitada que antecipava a maior aventura do mundo e a mancha laranja que sempre lhe ofuscava a lembrança do rosto, a mancha cor de laranja que deveria ser protectora, infalível e que tinha falhado e que agora lhe ofuscava a lembrança do rosto mais importante de todos os rostos.
Lembrava-se da promessa que tinha feito, se conseguires isto fazemos aquilo, nem se lembrava mais qual tinha sido o objectivo, qualquer coisa tonta, alcançável com pouco esforço e apenas alguma vontade e ele fez num instantinho e voltou aos saltos para cobrar a promessa, vamos? Quando? Amanhã? Foram mesmo no dia seguinte.
Abriu os olhos, conseguiu abrir os olhos e ver, mas estava de novo parado e desta vez sabia que tinha chegado ao limite, não iria conseguir avançar mais e voltou as costas e fez o caminho inverso, de novo em direcção ao vazio, à ausência dos dias.
Foi num dia de verão, num pequeno barco a remos, as canas suspensas na borda, as linhas que furavam a água levando convites aos peixes que nem sequer por ali nadavam, mas não importava, era a alegria de estar com o filho, que de repente desaparecera, apenas porque alguém bebera de mais e os abalroou com um iate branco, de novo rico que não sabia o que fazer ao dinheiro e a mancha cor de laranja que o devia ter protegido de nada mais serviu do que agora lhe esconder um rosto que tanto queria voltar a ver e o mar que ficou tão longe.
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on segunda-feira, agosto 3
at segunda-feira, agosto 03, 2009
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Privilégios noutras paragens
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