Basiliüs  

Posted by Bruno Fehr in

31 de Dezembro. 23 horas. Noite de lua cheia. Ao longe ouvia uivos de lobos misturados com os assobios gélidos do vento, e lá estava ela sentada na sua poltrona lendo “Basiliüs”, o livro da minha vida, leitura que intercalava com um olhar triste pela janela. Eu sei que ela me esperava desde o dia em que parti, e eu desde esse dia sonhava em voltar a vê-la... Tê-la. A escolha que me foi dada era maior que eu, eu não poderia escolher entre viver a seu lado até ao fim da sua vida, vendo-a a envelhecer e morrer um pouco mais todos os dias, mas também não podia tê-la ao meu lado para toda a eternidade tornando-a num monstro como eu. Uma escolha de amor, o amor egoísta de a ter para sempre e o amor piedoso de a deixar ter a vida que eu queria e que me foi negada... Ser mortal sem viver neste constante frenezim.

A cara dela estava lavada em lágrimas serenas e eu chorava por dentro como o animal que sou, ao vê-la. Eu queria que ela soubesse que estou ali e que estarei sempre ali, a seu lado, protegendo-a do mundo cruel que ela conheceu através de mim. Ela ao saber quem sou, o que sou, tornou-se num alvo e o meu amor obriga-me a protegê-la por toda a sua vida, pois eu tenho tempo, tenho todo o tempo do mundo.

Não há cruz que me assuste. Não há água benta que me queime. Não há alho que me afaste. Não há sol de que me esconda. Não há caixão onde durma. Não durmo. Não me canso. Não como. Não bebo. Só o frenezim.

Ela queria ficar comigo para sempre, e eu com ela. Só que ela não sabe que para sempre é tempo demais, não é tempo demais para amar mas sim para viver, se é que isto se pode chamar vida.

O cheiro do corpo dela enche-me, domina-me, turva-me o pensamento e o julgamento, o frenezim contraí todos os meus músculos sinto o sangue a correr de forma alucinada nas minhas veias e sinto, vejo o sangue dela morno, doce, irresistível, enquanto meu ferve. O frenezim toma conta de mim. Grito por dentro por longos instantes enquanto lembro os momentos felizes que passámos juntos, quando eu era só um homem e ela a minha mulher. Quando eu a seu lado me desliguei do monstro e me senti humano. Quando eu me senti pela primeira vez leve, livre e aquele sentimento a que chamam felicidade. Sim, senti isso.

Aproximo-me dela lentamente na escuridão quebrada pelo seu candeeiro de leitura. Gandir deitado a seus pés levanta a cabeça sem me denunciar, reconhecendo-me.

Sem se levantar, sem olhar para trás, ela diz “toma-me, sou tua”, num impulso irreflectido pego-a, sugo-a, sinto-me a pairar drogado pela doçura do seu sabor, extasiado pela satisfação do desejo e o saciar do frenezim. Deu para ouvir seu último suspiro, deu para sentir a última batida do seu coração. Senti o arrepiante gelar da sua pele. Pela primeira vez, na minha maldição a que chamam vida, chorei, chorei por ter cedido ao animal em mim e ter privado quem eu mais amava de viver.

Olho-a jazida no chão. Pálida. Mordo o meu lábio até sangrar e beijo-a. Sento-me e com “Basiliüs” na mão e inicio a escrita de uma nova página, a nossa página, enquanto espero pelo renascer da minha amada. Agora na maldição depois da morte, nada nos pode separar a não ser...

O frenezim...

Abandono  

Posted by mf in


No teu sorriso me perco
quando em vão me oferto
ao sossego do meu cansaço.

Sorriso-rasto de luz
que me envolve e seduz
nas teias de um abraço.

Sorriso sempre embrulhado
em fresco fogo buscado,
que me queima a cada passo.

Sorriso de alma gigante
rasgado e provocante
que grava em mim o seu traço.

Sorriso-certeza de encontro
sonho com que me defronto
invasor de meu espaço.

Sorriso que em mim flutua
e deixa minha alma nua,
perdida no seu compasso.

Cadáver Esquisito X  

Posted by ipsis verbis in

Aqui estão mais dois textos que se encontram a meio, apenas por uma palavra. Mais uma vez, eu escrevi a primeira parte do texto (verde garrafa) e passei ao Bruno Fehr a palavra telemóvel (cinzento). A partir dela, ele fez a segunda parte (vermelho tinto).


 

Posted by ipsis verbis in

Tinha acabado de chegar a casa do trabalho, depois de lhe ter telefonado, depois de ter fumado um cigarro à entrada do prédio e depois de esvaziar a caixa do correio.
- "de amanhã não passa! vou colar aqui a porra do autocolante a proibir publicidade..."
Descalçou os sapatos, dirigiu-se para a cozinha e serviu-se de um copo de leite fresco.
Enquanto vagueava pela casa de copo na mão, verificava que em cada divisão, haviam coisas amontoadas, encaixotadas e desarrumadas, como se se tivesse mudado há dias. "Amanhã", dizia ela para os seus botões, "amanhã arrumo isto tudo"
e assim deixar-se-ia assentar por ali. Mas o amanhã dela era sempre adiado.
Sentou-se no sofá e acendeu um cigarro.
Estava cansada do trabalho. Triste por ele não poder ir ter com ela e chateada por não conseguir parar de fumar.
E enquanto pensava qual das 3 lhe estava a pesar mais, o seu telemóvel interrompe-a.
- "estou?"
(era um número anónimo, claro)
- "sim?"
(e quando não é publicidade, do outro lado nunca dizem nada, claro outra vez)
Manteve a chamada, mas não disse mais nada e começou a fumar um outro cigarro.
Passados 5 minutos, ouve do outro lado do

telemóvel:

"ainda não percebo a importância deste objecto na minha vida. Antigamente era uma ferramenta de engate, trocas de sms's sem fim ao ponto das páginas da minha factura detalhada no final do ano serem mais que as da lista telefónica da zona centro. O telemóvel era como que um artigo essencial de vestuário, andar sem ele era o mesmo que andar nu, tinha, sempre que me esquecia, de voltar atrás para o ir buscar. Hoje é um adereço, é bonito, moderno, as pessoas olham e admiram-no mas não serve para nada. Se anda comigo ninguém me liga, se o largo por 5 minutos tenho 10 chamadas não atendidas, se fico sem bateria todo o mundo precisou de falar comigo com muita urgência... mas já passou, já não é importante pois eu liguei de volta. Por que raio se preciso de falar com alguém mas não quero ligar a ninguém, o raio do telemóvel não toca? Se espero uma chamada ela não chega, mas se vou cagar já toca e normalmente quando já estou na sanita com o cagalhão a meio gás e telemóvel está do outro lado da casa. Cagalhão para o telemóvel!!!
- Sim?

- Olá, onde estás?

- Em casa...

- O que estavas a fazer para demorares tanto a atender?
- Estava a pensar em ti...

- Ooooooohhhh que querido!
"

Foi só um empurrão, só isso...  

Posted by I.D.Pena

Os minutos ouvem-se tic, tac , parecendo permanentes os tics e os tacs entranhavam-se pela mente .

Rolou na cama novamente, com a esperança de nao ouvir os barulhos daquele tempo inventado, na esperança de mergulhar no permanente nada que o sono lhe oferecia, já não dormia à 55horas , não conseguia esquecer ou sequer deixar de pensar naquilo que tinha feito.

Repensou os seus passos e tentou revê-los vezes e vezes na esperança de antecipar alguma duvida, precisava de se assegurar que tinha tomado a decisão certa. Que tinha dito a mentira certa.

Respirou fundo e tentou acalmar-se, afinal de contas , pensou , o que importa a vida de uma velha com 72 anos com dinheiro a mais e que acredita em Deus ? Para que serve as jóias ou pedras preciosas numa velha carcaça com reumático?

-Para nada!

Disse aquilo para si próprio. Odiando-se ao mesmo tempo.

E depois o silencio.

Um silencio que ocupava espaço, e na cozinha algo estalava, não tinha a certesa do que fosse, também já não interessava, tinha sido um dia para esquecer , 12 horas a trabalhar outras tantas a responder e tudo a perguntas incómodas.

Levantou-se da cama e foi à varanda fumar um cigarro, precisou de consumir um pouco de morte.

-Foi só um empurrão, repetiu desta vez em voz alta.

Ninguém lhe respondeu. Tudo estava calmo, apenas 1 cão ladrava ao longe em tom de desafio.



Fim

 

Posted by Jane Doe in

Fazes sempre um jogo sujo. Levas-me sempre a perder-me pelas curvas do meu desejo do teu corpo e depois dizes que não te resisto. E és tu quem não resiste. És uma Puta. Que me sabe manipular e dar o controlo quando és tu quem o tem. Estás aí silenciosa, à espera que eu te queira, que eu te arranque da cadeira, que eu te foda até à exaustão. E tudo em ti me provoca e me chama e eu só quero resistir a mais uma noite na tempestade de fogo do teu sexo em mim. Olhas-me, quase com desdém, fumas o teu cigarro e cruzas as pernas. Parece aquele filme da Sharon Stone. E ficas à espera. Sinto-me a ganhar volume e sei que olhas de soslaio. Vejo nos teus lábios doces, ferozes o sorriso da vitória. Sabes que não vou aguentar muito mais tempo aqui, neste silêncio, sabes que tarde ou cedo te vou arrancar dessa cadeira, arrastar-te e o jogo vai começar. O jogo que tu desejas tanto quanto eu. É um duelo. De forças, de desejos que se defrontam para se saciar cada um a si, num acto de egoísmo máximo. E às vezes penso que sexo deve ser isso. Um acto máximo de egoísmo pois só chegamos ao auge do nosso ser. E eu não consigo pensar mais...



É engraçado como te adivinho o suor. A tentativa de te conteres. A vontade exala-te pelos poros, enche o ar e alimenta a minha. Não resistas, cabrão, sabes que estou à espera que me arrastes, que me domines, que me fodas até não aguentar mais. Esse volume nas calças diz-me que não vais demorar muito mais. E tenho razão. Por trás de mim sinto um forte puxão no cabelo que me faz mover a cabeça para trás. E sinto calor. Não demores. Mas tu hesitas. Como se algo em ti tivesse medo. Não hesites. E decides-te e puxas-me e eu deixo-me ir atrás. Dói ser puxada pelos cabelos, dói ir pela casa, até onde tu queres que eu vá mas tu sabes que é esta dor que me deixa louca de tesão, que me incha, que me molha que me faz tocar o êxtase. És bruto, levantas-me e encostas-me contra a parede. Chupas-me os seios com uma violência que quase me faz chorar mas eu gosto, eu gosto e tu sabes. E continuas. E não tens dó. Sabes que o teu domínio vai durar pouco. E deixo-te gozar desse poder para logo retomar o meu lugar de Puta, da tua Puta preferida, e atiro-te contra o chão. Sinto que queres logo tocar o êxtase mas sei que não to quero dar. Brinco contigo, faço doer, provoco-te sensações que tu jamais imaginaste que podias sentir. Até que não aguentas mais. E me atiras ao chão. E eu deixo porque eu não aguento mais. E fodes-me, até já não restar mais nada, mas voltas a foder-me e a foder-me e és impiedoso tal como eu o sou contigo. E a luta dura até não haver mais forças, e sugamo-nos até não aguentar mais, no acto mais egoísta que podemos conseguir. E eu acabo a pensar. Porque é que as pessoas pensam que o sexo é amor ou uma expressão de amor e não o que realmente é? A expressão máxima do egoísmo...

Puta que pariu o amor!

Na segunda pessoa  

Posted by LBJ in



Saltou por cima da corda suspensa entre dois troncos de madeira, a corda bamba estremeceu quando lhe tocou com a ponta do pé, a corda bamba como a sua vida, estremeceu como estremecia a sua vontade de continuar em frente. Ontem como hoje como amanhã tentaria fazer este caminho, festejando como objectivo alcançado, cada metro, cada passo a mais que na véspera. Por vezes recaia, voltava para trás mais cedo, mais longe.

O próximo passo fazia-o chegar à esquina e de lá conseguiria já vê-lo, pleno, suave, fascinante, o retomar de um sonho perdido e desejado no complexo labirinto que se tornara a sua cabeça, uma arquitectura de ignorante louco na forma com que os seus neurónios se organizaram. Parou e hesitou, o ângulo frio das paredes protegia-o ainda, um passo mais… Um passo mais e conseguiria vê-lo e desta vez não iria ficar torpe pela visão, desta vez iria continuar, mas os pés não lhe obedeceram, ficaram ali imóveis agarrados às pernas, como se os músculos num repente se tivessem desligado de qualquer linha de comando.

Teimou e conseguiu avançar e dobrou a esquina e fechou os olhos, não queria que o choque da visão o fizesse parar e na escuridão do seu interior veio-lhe à memória aquele dia longínquo, os risos de criança excitada que antecipava a maior aventura do mundo e a mancha laranja que sempre lhe ofuscava a lembrança do rosto, a mancha cor de laranja que deveria ser protectora, infalível e que tinha falhado e que agora lhe ofuscava a lembrança do rosto mais importante de todos os rostos.

Lembrava-se da promessa que tinha feito, se conseguires isto fazemos aquilo, nem se lembrava mais qual tinha sido o objectivo, qualquer coisa tonta, alcançável com pouco esforço e apenas alguma vontade e ele fez num instantinho e voltou aos saltos para cobrar a promessa, vamos? Quando? Amanhã? Foram mesmo no dia seguinte.

Abriu os olhos, conseguiu abrir os olhos e ver, mas estava de novo parado e desta vez sabia que tinha chegado ao limite, não iria conseguir avançar mais e voltou as costas e fez o caminho inverso, de novo em direcção ao vazio, à ausência dos dias.

Foi num dia de verão, num pequeno barco a remos, as canas suspensas na borda, as linhas que furavam a água levando convites aos peixes que nem sequer por ali nadavam, mas não importava, era a alegria de estar com o filho, que de repente desaparecera, apenas porque alguém bebera de mais e os abalroou com um iate branco, de novo rico que não sabia o que fazer ao dinheiro e a mancha cor de laranja que o devia ter protegido de nada mais serviu do que agora lhe esconder um rosto que tanto queria voltar a ver e o mar que ficou tão longe.