Agora que já foi tudo dormir, eu penso ir também. Apago tudo, deixando a casa numa doce escuridão, e vou para o meu quarto. Espero que o sono se apodere logo de mim. Pode ser à bruta ou não, o que eu quero é dormir. Dou uma volta, dou duas, dou três. Penso naquele texto que tenho de escrever. Penso no que quero realmente escrever. O sono não vem. Acendo a luz do quarto, pego no bloco de notas, e na caneta. Começo a escrever, mas chegada a um ponto leio o que escrevi e sinto que falta uma coisa. Sentimento. Sinto apatia a escrever uma coisa que me devia causar lágrimas, porque afinal estou a escrever sobre mim. É uma apatia que esconde lágrimas e dor. Rasgo as páginas porque já não fazem sentido. Não consigo dormir. Penso em vestir-me e ir até ao mar, a meio da noite, mas fico-me pelo pensamento. Penso que quero morrer. Saio do quarto, vou para a sala onde o frio e a escuridão imperam. Na janela vislumbro o mar, mais perto a ponte. Na mesa os comprimidos e a garrafa de vodka. E tudo me chama. Eu fico a pensar nas possibilidades, fico a concretizar tudo na minha mente, mas apenas na minha mente porque no fundo até sei que não é o que quero. Sou capaz, mas não é por aí.
A ponte é de todas a solução menos elegante. Menos romântica. Seria a que eu nunca tomaria. Gosto do mar, gosto de sentir que o mar tomaria conta de mim, mas aqui sempre existe a hipótese de tubarões. A minha forma favorita de morrer, é como a das estrelas. As que brilham mas não aguentam esse brilho e acabam por se apagar. A garrafa de vodka e os comprimidos em cima da mesa chamam por mim, tal como chama a ponte, tal como chama o mar, porque eles não me chamam, eles estão simplesmente ali e é a Noite quem me chama. Deito-me no sofá, e continuo a imaginar o processo. Gosto de imaginar como seria, não morrer, mas o depois. Encontrarem o corpo. Chocarem-se. Quem sabe até chorarem por mim. Imagino a família a receber a noticia e a chorar. E é nesta parte que fantasio mais. Imagino o funeral, as palavras falsas que diriam de mim, os falsos sentimentos. E sei que também é por isso que não quero. Porque não quero as lágrimas falsas, porque não quero que digam depois da morte o que nunca sentiram em vida, só para parecer bem.
O sofá não resulta. 5 da manha, marca o relógio. Tarde, muito tarde. Para quem tem de se levantar daqui a 3 horas e passar 5 em viagem seguidas mais não sei quantas em reunião. Decido que é tempo de ir dormir. Mesmo que não queira. Num último relance à garrafa e aos comprimidos, constato que nunca estiveram lá. Abro a porta do quarto, deito-me na cama, e continuo a imaginar. Até de manhã.
Eu escrevi a primeira, passando apenas a última palavra do meu texto à Ipsis Verbis a qual ela usou para escrever a sua parte e me deu a sua última palavra e assim sucessivamente.
(As palavras passadas entre nós, aparecem no texto apenas uma vez)
Bruno Fehr - verde garrafa
Ipsis Verbis - vermelho vinho
Palavra passada entre nós - "Chamas"; "Casamentos" e "Viver"
chamas
e outras chamas como línguas vermelhas e aguçadas, quentes e abrasadas. É sempre assim. Quando me sinto no limbo, (entre o que devo ou não fazer) penso sempre no inferno e não sei explicar porquê. Continuo?
Ainda estou a pensar se continue em frente, ou se vire para a direita. Melhor mesmo, só para outro país... Acabei de me queimar com o cigarro. (Não, não tenho dessas taras) Um palmo mais à frente e estaria a colocá-lo no cinzeiro, assim, como tive que travar de repente por estar a olhar para baixo, deixei cair a puta da beata... Virei realmente para a direita porque fraquejei.
São os nervos agora. Consigo senti-los à flor da pele.
Estou a chegar e já só me apetece desistir da ideia e voltar para trás... Ai... Hoje teria sido um bom dia para não ter saído de casa. Teria inventado uma gripe, um tornozelo deslocado... Pfff!
Hoje, se não tivesse já combinado e recombinado coisas, teria sido um bom dia para ter ficado na cama.
Visitar parentes e conhecidos que já não vemos há muito tempo é sempre desconfortável. Bem, pelo menos para mim. Mas pior que isso, só mesmo funerais e
casamentos
que vejo agora como ilusões. O meu corpo cede, lentamente sinto-me a desistir. Ouço uma voz que me chama, é o meu pai que irrompe pelas chamas pegando em mim, soltando-me. Volto-me para o abraçar mas ele já lá não está. Vejo-o ao longe tentando libertar a Ana das chamas e elas tomam-no em segundos, no momento em que o chão cede e os vejo desaparecer à minha frente.
O meu pai, a minha mãe, a Ana. Todo o meu mundo destruído enquanto eu ainda estou nele.
No meio de um calor que não sinto, gelo no local onde estou. O meu mundo ruiu e sem ele não tenho onde
viver.
E era mesmo isso que eu ia fazer. Mas antes, só queria descansar...
Já longe do desconforto, chego a casa e dirijo-me para a sala. Um copo de vinho para acalmar é sempre reconfortante. Pego numa garrafa ao acaso e abro-a.
Sentei-me no sofá com os olhos postos no ecrã da televisão desligado, e fico a olhar para o meu reflexo.
O vinho não é nada de especial. É alentejano e tinto, (embora na garrafa esteja escrito que a cor é de um "rubi intenso"), e alguém mo ofereceu recentemente. Acho eu...
E já estou a ficar com sono. Grande vinho!
"Bem-vindos... Por favor, venham, sirvam-se, estejam à vontade.", digo-vos, com um sorriso no rosto e um copo na mão.
Este recanto junto à praia é agradável, mistura-se o verde das trepadeiras no fundo azul do céu, mistura-se o bater das ondas com o riso e as conversas dos convidados e visitantes.
Cadeiras e espreguiçadeiras almofadadas, pufs e bancos coloridos espalham-se pelo jardim e pela areia. Uns expostos ao sol laranja e quente da tarde, outros na sombra fresca de guarda-sóis de palha.
"Venham, sirvam-se.", repito, conforme os convidados e as visitas vão chegando.
Compridas mesas com toalhas brancas e azuis apresentam-se cheias de comidas saborosas e aromáticas, tradicionais e exóticas, cativando a atenção até de quem não tem fome.
Frutas tropicais e regionais cortadas, mangas maduras a contrastar com kiwis frescos e morangos suculentos, abacaxis recheados de uvas e cerejas, bananas em rodelas com amêndoas torradas e fios de caramelo, fatias de maçãs e pêras doces, pêssegos frescos e em calda, tornam a mesa exuberante e atractiva.
Frutos secos apresentam-se em tacinhas de porcelana branca: pistácios, amêndoas e amendoins, nozes e macadâmias, cajus e pevides, castanhas-do-maranhão e sultanas douradas, pêras-passa, ameixas e alperces secos, entre frutas cristalizadas e outras sementes, pontuando com as suas cores secas e quentes o conjunto das travessas de frutas frescas.
Em saladeiras transparentes misturam-se alface, tomate, rúcula, espargos, milho cozido, cogumelos, rebentos de leguminosas, cebola e cenoura, ervas bravas, couve-roxa e branca, aliciando ao seu tempero com azeite fino, vinagre suave e molhos diversos.
Em travessas fundas de barro estão os outros acompanhamentos: massa, arroz, batata, couscous, boulgour, quinoa, entre outros, cozinhados de diferentes maneiras e com diferentes temperos.
Uma mesa apresenta queijos de todos os países, duros ou cremosos, aromáticos, acompanhados por compotas, marmeladas, pães diversos e tostas.
Outra mesa tem uma diversidade enorme de salgadinhos, realçando-se chamuças, rissóis, croquetes, tartes salgadas, pastéis de massa tenra, pastéis de forno, pãezinhos com chouriço e folhados de salsichas.
O dia está óptimo, sem excesso de calor devido à brisa que vem do mar e agita as rosas perfumadas e as glicínias, já sem flor, do jardim.
Os mais acalorados encontram no jardim uma tenda de gelados, onde se constroem autênticas obras de arte doces e frias, em taças e pratos, com frutas, bolachas, chantilly e toppings variados.
Ao lado, outra tenda refrigerada apresenta os doces, uma diversidade multicolorida de sabores e texturas, tartes, mousses, bavaroises, semi-frios, bolos, gelatinas, sericaia com ameixa-de-Elvas, lampreia-de-ovos, tigeladas, queijadas e pão-de-rala, entre outros doces conventuais, assim como pequenos bombons do mais delicado chocolate, ovos-moles de Aveiro, frutinhos de massapão do Algarve, entre miniaturas de pastelaria fina.
Além, junto às rochas, um porco gira no espeto, salpicado com louro, pimentão, pimenta, alho, outras ervas e especiarias, azeite e vinho; abrasado e a tostar, já se lhe cortam fatias finas e saborosas para juntar a pedaços de pão regional que se retiram, quentes e apetitosos, do forno a lenha ao fundo do jardim.
Na grelha, legumes, carnes e peixes diversos, gambas e outros mariscos, soltam em gemidos aquecidos os perfumes que trazem da terra e do mar.
O bar tem bebidas para todos os gostos. Vinhos e licores, cervejas e sumos frescos de fruta, águas cristalinas e chás gelados, espumantes e sangrias, caipirinhas e cocktails coloridos refrescam as gargantas sedentas de humidade e frescura.
O céu sem nuvens apresenta um Sol de meio de Primavera, brilhante e prometedor de um Verão quente.
Os convidados juntam-se em grupos; uns passeiam à beira-mar, outros estão sentados em amena cavaqueira, outros ainda divertem-se em jogos de equipas e em desportos náuticos.
Nas ondas, surfistas deslizam na espuma, voam até ao céu para logo mergulhar na água fresca e salgada, longe dos banhistas que se deliciam a nadar com os golfinhos.
Aqui e ali, uma ou outra pessoa está sentada numa rocha, sozinha mas não só, simplesmente a observar os outros. Em meditação, em contemplação.
A música atrai dançarinos, que se movem ritmicamente, sentindo a melodia no corpo e soltando-a de novo em gestos harmoniosos.
"Venham, há comida com fartura, há bebida para todos, não se inibam, não se envergonhem, venham...", convido os mais tímidos.
Assim vai passando a tarde, vão correndo as horas. Assim continua a festa.
O Sol inicia a sua descida sobre o mar; no lado oposto, vem a Lua, cheia, avermelhada, a subir o horizonte.
Levanta-se uma brisa mais forte, que agita vestidos e saias, camisas e blusas, túnicas e calças, plantas e guarda-sóis.
Pequenas fogueiras acendem-se pela praia, outras ainda nalguns recantos do jardim.
O Sol põe-se, vermelho e fogo, calor e luz, um último grito de paixão antes de morrer numa explosão de cor sobre o mar.
Alguns banhistas e alguns surfistas deixam-se estar, banhados pelo sal, pela água, pela cor, os seus corpos recortados a sombra na luz.
Anoitece.
A Lua cheia não permite ver muitas estrelas, apenas Vénus grita a sua paixão pelo Sol que acompanha sempre.
A noite é clara, iluminada pela Lua e pelas fogueiras.
Servem-se sopas quentes, caldos-verdes e canjas, cremes de legumes, sopas-da-pedra e sopas de peixes.
Outros pratos são apresentados, versões quentes dos acompanhamentos; continuam-se a grelhar carnes, peixes, mariscos e legumes.
Nas fogueiras, assam-se pedaços de chouriças e salsichas em espetos e caramelizam-se marshmallows.
Já não há ninguém na água, as pessoas reúnem-se à volta das fogueiras, ou à roda das mesas iluminadas por velas pequenas e archotes altos.
Aproxima-se a meia-noite.
"Por favor, peço-vos a vossa atenção por uns minutinhos...", chamo, no palco onde a banda tocara.
As vozes calam-se, a atenção é-me dirigida.
Ergo o meu copo de espumante doce.
"Desde já, agradeço-vos a vossa vinda, e gostaria que me acompanhassem neste brinde:
À Prisão de Palavras, invulgar prisão onde hoje entro voluntariamente, e aos seus prisioneiros, Bruno Fehr, A Mor, Afrodite, Ipsis Verbis, Jane Doe, John Doe, LBJ, mf:
Desejo que, por muitas palavras que aqui se encerrem ou libertem, nunca desistam de algo que sabem fazer tão bem: Escrever!
Muito Obrigada pela vossa hospitalidade e pela oportunidade de me aprisionar convosco!"
Os fogos-de-artifício soltam-se sobre o mar e emprestam arcos-íris ao céu e à água, enquanto os copos erguem-se, brindam e tilintam...
Tchim tchim!!!
Teus lábios sequiosos
Sedentos
Invadem o meu poço.
Ouve-se o sussurro
Cultivado
Dos gemidos.
Tua mão felina
Arrogante
Insinua-se em mim.
Sou eu e não sou eu.
Elevo-me como onda
Em ímpeto
Desatinado.
Arqueio como ramo
Em temporal
Agitado.
Rujo como leoa
Em encalço
Faminto.
Nas minhas pernas
Escancaradas
Só assoma o teu cabo.
Na minha pele
Incendiada
Só avança o teu arado.
Na minha toca
Devorada
Só se sente o teu vigor.
Tudo é teu.
Abocanhas
o meu mundo.
Quanto mais lavras
mais te perdes.
Quanto mais te perdes
Mais te amarro
Ao meu cais.
Entro hoje pela primeira vez nesta prisão de palavras e esmaga-me a presença de todas as outras que aqui se encerram.
Trago comigo muitas palavras que se agitam na sua vontade, que me sossegam os temores, que dizem saber o que dizer, que sabem o que irão contar. Sou apenas o seu portador, sem razão de posse ou competência para as dominar deixo-as tomar consciência deste espaço que agora também lhes pertence.
Trago comigo palavras belas, que querem falar do mar e das gotículas de espuma que flutuam quando ondas suaves abraçam praias solarengas e dos carpelos das flores e do ponto de brilho nos olhos de uma paixão ou da forma como se pode simplificar um sorriso de uma criança. Palavras que possuem a capacidade de se nos enroscar como gatos e transportar para uma ponta do arco-íris sobre pequenos raios de luz que penetram o cheiro da alma deixando-nos ébrios na alegria de ser feliz, por uma outra vez e sem nenhum outro porquê.
Trago comigo palavras de atitude, que querem expressar a sua força, arrancar uma lágrima, alertar sentidos, arrepiar vontades, potenciar os verbos, contar de como nos vão influenciar o momento seguinte. Palavras que nos podem prender em promessa ou libertar em resolução, que são, que tem, que podem, que fazem e que não nos deixam na indiferença, que mexem nas pequenas coisas que nos precipitam na avalanche do abraço das grandes causas.
Trago comigo palavras cruas e feias, que expõem raivas e falam da morte e de dor e de incómodos e da crueldade de sermos por vezes somente carne sem espírito, descrevem desesperos e a angustia do precipício e do detalhe da vertigem na hora de pressionar o gatilho, de entranhas e sangue e nojos que nos estupram os sentidos e arrepiam em desassossego. Palavras que gostaríamos de esquecer, mas não podemos esconder, que se colam na memória e mecanizam as sinapses emocionais.
Trago comigo palavras que relacionam pessoas, que falam de namoro e de paixões e que sonham o amor, que falam de encontros entre anjos caídos e demónios ascendidos, dos pormenores da luxúria, da humidade que existe na ponta duma língua que toca no centro de prazer do outro, de preliminares, do durante e do finalmente e do roçar de corpos na noite infindável, sobre uma lua, uma estrela ou simplesmente debaixo da vontade do desejo.
Trago comigo palavras que contam histórias, que se aventuram pelos caminhos dos enredos, que se enleiam em tramas, nos tiram o ar em suspense, que cruzam pessoas e lugares e outras pessoas e outros lugares, reais e imaginados, em passados, presentes ou futuros. Palavras que se misturam em narrações de longas viagens ou pequenos quotidianos, palavras que descrevem o efeito borboleta de um instante ou do arrastar de uma vida.
Trago comigo palavras de graça e ritmo, que rabiscam incoerências de sentido, imaginações de louco delirante e formas de provocar sorrisos e riso e a pureza do inesperado da gargalhada. Palavras jocosas, maliciosas e libertinas, soltas e sem controle, frenéticas e alheias de maldade, que falam da interacção de elefantes travestis e pinguins budistas e das razões culturais que levam a que o melhor local de Portugal para limpar as fossas nasais ser a A1 e das quinze formas expeditas de arregaçar o pito em período de regras ou após a ingestão de doses maciças de tulicreme.
Entrei hoje nesta prisão carregado de palavras, com responsabilidade de as prender, mas sem me aperceber deixei que me dominassem e elas lêem-se livres na compreensão de quem as liberta e entendo agora o meu destino, esta não é uma prisão de aprisionar palavras, esta é uma prisão de palavras e serei eu para sempre o seu prisioneiro.
Nota: Os meus posts, têm normalmente uma musica que os completa, por aqui essa regra não se aplica, mas deixei uma canção no meu antro e se vos apetece podem lá ir ouvir, não tem nada que ver com o texto e não sei se vos compensa o trabalho, mas vós é que sabeis…
Um fim não é mais do que um novo inicio, por isso quero apresentar a todos, os nomes dos dois novos colaboradores, o LBJ e a Fada que irão partilhar com todos nós as suas palavras, contribuindo para o melhoramento deste modesto espaço. Existe a possibilidade de se juntar a nós mais uma pessoa, para esse lugar há candidaturas abertas (ver barra lateral).
Andaram cerca de 15 minutos até que ela entrou num prédio na nova urbanização feita junto ao rio. Ele seguiu pela rua até ao parque de estacionamento mais à frente, parando junto a um Clio já com a tinta a cair e ferrugem a despontar onde esta falava. Tirou as chaves do bolso, abriu a porta e entrou para o lugar do condutor. Deixou-se estar quieto, fumando o cigarro que acabava de acender. O silêncio imperava dentro da viatura, ouvindo apenas o som do papel que queimava a cada aspiro do fumo e o som da expiração quando o libertava. Com um gesto rápido tirou o capuz que o cobria e recostou-se um pouco mais no banco. Gozava do silêncio que por ali reinava, sem pessoas, sem carros a passar. Mesmo a chuva miúda que continuava a cair não fazia barulho. Baixou o vidro um pouco e sentiu o frio bater-lhe na cara quase como uma palmada sem mão. Mandou a pirisca fora e ficou a ver o resto do cigarro absorver a água até se desfazer. Rodou a chave na ignição até o quadrante ficar com as luzes acesas e passou o limpa pára-brisas deixando os olhos seguirem o movimento acompanhado pelo som estridente da borracha que se esfrega de encontro ao vidro. Conseguia ver o prédio onde ela tinha entrado, sabia qual o seu andar, sabia até qual a sua janela.
Na sua mente o plano calculado era revisto. A entrada, o trabalho, a saída... A saída era sempre a mais importante. A ideia de ser mandado para um calabouço não o agradava, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha de alto a baixo.
Retirou o plástico que cobria o volante e caiu-lhe no regaço o envelope castanho que lhe tinha sido entregue. De dentro retirou a fotografia dela e os apontamentos que tinha tomado nota ao longo das semanas que a tinha vigiado. Releu-as num ápice e olhou novamente a fotografia. De sorriso na cara atravessou-lhe a mente que era um desperdício aqueles olhos não irem ver mais nada na vida. Era um sorriso sarcástico que de indulgência nada tinha. Tinha sido contratado para um serviço e era isso que ia fazer. Nada mais, nada menos.
Guardou tudo novamente no envelope, escondeu-o por baixo do polo, fechou o vidro e saiu do carro. A chuva continuava incessante, picando-o como dezenas de alfinetes, e caminhou pela beira do rio até debaixo da ponte. Tirou o envelope e ateou-lhe fogo, aproveitando a chama para acender mais um cigarro. Ficou a ver arder o papel sendo que a última coisa a desaparecer foram os olhos do seu contracto. Com o pé empurrou as cinzas até à água e viu-as dissolverem-se na torrente que aumentava de força a olhos vistos. Lançou o que restava do cigarro ao rio e avançou lentamente em direcção à entrada do prédio.
Deu a volta pelo empedrado irregular que levava à entrada das garagens, colocou o capuz novamente e as mãos nos bolsos. Sentia outra vez a lâmina nas mãos, fina, fria, dilacerante. O seu corpo começava a dar os sinais de que o gozo se aproximava, sentindo o acelerar do coração a cada passo que dava. A adrenalina fazia o efeito nos nervos dando-lhe o furor para o que tinha que fazer. Chegou à porta de entrada das traseira e olhou em volta para ter a certeza que ninguém o observava, baixou-se a preparou a gazua. Foi fácil abrir a porta, afinal já o tinha feito àquela porta uma boa dúzia de vezes, entrou e deixou apenas encostar sem fechar, deixando o tapete de entrada ligeiramente entalado. Se tudo fosse como nos outros dias, além do apartamento de destino, só um outro no último andar teria alguém. Subiu pelas escadas até ao quinto andar e chamou o elevador. A espera estava-o a deixar naquela inquietude frenética da eminente explosão quase orgásmica. Entra e desce ao terceiro. Com muito cuidado aproxima-se da porta do apartamento pretendido e baixa-se ao nível da fechadura. Introduz a segunda gazua e roda muito lentamente não fazendo qualquer barulho. Entra e encosta a porta, dirigindo-se à sala mesmo em frente.
Olha-a ao fundo, sentada de frente para ele.
- Estava à tua espera. - Disse-lhe ela.
P.S. - Este é último texto que publico aqui. A todos os que me leram o meu agradecimento. Se terá um fim esta história? Provavelmente... Vai-se construindo este texto conforme se vai construindo a vida.
Mais uma vez, os meus agradecimentos pelo cuidado, atenção e até carinho com que fui sendo lido. Um bem-haja a todos e até qualquer dia. Haveremos de nos encontrar numa dessas esquinas da vida.
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