Branco.
Um branco imenso até perder de vista.
Não gostava de neve, nunca gostou. Aceitou ir na viagem porque, bem, foi ideia dele, aceitava sempre tudo que era ideia dele. Tentou fazer-lhe ver que irem por ali não era sensato, vinham a ouvir na rádio que a tempestade tinha bloqueado as estradas, os avisos eram claros, os automobilistas não deviam tentar sequer atravessar a serra. E o carro deles não estava de todo preparado para aquelas condições. Claro que ele não a ouviu, e olhou-a da forma que sempre olhava quando ela fazia algum comentário que o contrariava. Por isso manteve-se calada quando ele passou as barreiras que fechavam a estrada e começaram a subir a serra. Ficou com medo que ele se enervasse, não gostava quando isso acontecia, sobretudo dentro do carro. O espaço era demasiado pequeno e o rosto dela ficava ali, mesmo ao alcance do punho dele.
Aguentou em silêncio o pânico que começava a apoderar-se dela, de cada vez que sentia o carro perder a aderência e a deslizar na neve. Tinham já passado várias horas desde que romperam as barreiras e começaram a subir a serra. Já há muito tinha deixado de ver o alcatrão, apenas neve, um manto imenso branco e escorregadio. Deixaram de ver casas também e agora começava a escurecer.
A altura do dia que ela mais detestava, o lusco-fusco, quando as cores se esbatiam e as sombras começavam a tomar forma. Ela conhecia bem as sombras, sabia bem o que se escondia nelas, e era nesta altura que consegui ver os contornos daquilo que apenas conseguia adivinhar na escuridão. O que ele rira quando lhe contara do medo que tinha do escuro, uma mulher adulta que dormia com as luzes acesas. Tentou curá-la do medo, terapia de choque, dizia ele, enquanto a fechava à chave no quarto com as luzes apagadas. O pai tentou fazer o mesmo quando ela era ainda miuda, e os irmãos, bem, esses divertiam-se com o pavor dela de cada vez que a fechavam num sítio escuro. Tanto o pai como os irmãos acabaram por desistir e aceitar o medo dela. Ele não, achava ridículo, e tinha ainda na testa a cicatriz que ele lhe deixara da primeira vez em que aceitou que o filho deles dormisse com a luz acesa. Acusou-a de incutir na criança os medos dela, talvez tivesse razão, era medrosa e fraca, e talvez estivesse a passar isso para o filho. Mas por outro lado, e se não fosse isso. E se o filho visse no escuro o mesmo que ela, como podia deixar que lhe fizessem a ele o que lhe fizeram e ainda faziam a ela ? Aquelas criaturas odiosas que apareciam sempre que as luzes se apagavam. Por isso levantou a voz e tentou fazê-lo ver que era normal deixar o miúdo dormir com a luz acesa, e por isso também ele levantou o braço e lhe bateu, a primeira vez. A primeira de muitas.
Manteve-se calada apesar do perigo, apesar de temer, por ela e pelo filho que dormia placidamente no banco de trás. O carro derrapou mais uma vez, a traseira deslizou e ela não emitiu um único som enquanto via o esforço dele para controlar o carro. Queria pedir-lhe para parar, para ficarem ali, tinham mantas na mala. Podiam esperar pela manhã, até que alguém viesse limpar a estrada. Tinham comida, também, podiam esperar. Mas nada disse.
- A culpa é tua sabes ? Se não insistisses para que almoçassemos antes de começar a viagem, tinhamos evitado isto. Já estávamos em casa se não fosse por ti e pelos teus queixumes estúpidos.
A culpa era dela, claro. Não o contrariou, mas o silêncio já não resultava, via pelo perfil dele que estava naquilo que ela chamava “full swing mode”, os lábios comprimidos, a veia que pulsava na têmpora… encostou-se o mais possível à porta, fora do alcance. Não foi o suficiente, o golpe veio tão rápido que não teve tempo de se desviar, acertou-lhe em cheio na face. Apesar da dor, sorriu interiormente enquanto pensou… amanhã vou ter que redobrar no blush, este vai deixar marca.
A distracção foi o suficiente para que perdesse completamente o controlo do carro, que começou a rodopiar pela estrada, em camâra lenta, cada vez mais próximo do precipício, até que parou, com as rodas do lado do condutor penduradas na berma. O carro suspenso num abismo enorme, todo branco, do qual não conseguia ver o fim.
- Não te mexas!! Ouviste, não te mexas, se te mexes desiquilibras o carro e vamos por aqui abaixo.
Mas ela mexeu-se, cuidadosamente, tirou o filho do banco de trás. Bem devagar, enquanto sentia o carro oscilar, abriu a porta, pôs primeiro um pé e depois o outro no chão, no chão firme. Bloqueou o som da voz dele, que lhe ordenava, pedia e depois implorava que não se mexesse. Num gesto só, atirou-se com o filho nos braços para o chão. Foi o suficiente para que o carro, depois de perder o ponto de equilíbrio, caísse na ravina. Ficou ali, sentada no chão frio, coberto de neve, enquanto o carro rebolava pela encosta, enquanto o ouvia gritar. Até que de repente, o silêncio, a vozinha do filho que lhe perguntava : O que aconteceu mamã ? Onde estamos ?
- Nada, filho, não aconteceu nada. Dorme, encosta a cabecinha e dorme. Vai ficar tudo bem. Nós vamos ficar bem.
Levantou-se e com o filho no colo, começou a longa caminhada até à aldeia mais próxima. Bem, eles iam ficar bem.
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on segunda-feira, janeiro 17
at segunda-feira, janeiro 17, 2011
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