Se eu pudesse postular determinava que quando chove o céu chora por alguém.
Se eu pudesse simplificar a chuva diria que ela é feita de água e de tempo assim como nós somos feitos de água e de tempo e de alma e de ainda outras coisas que se calhar não são assim tão importantes. Sei que sou mais chuva do que carne mas ainda não sei se sou mais alma do que chuva e gosto de a sentir molhada num dia sem frio e sem pressas e sem medos.
Se eu pudesse dissecar uma gota de chuva caída na palma da minha mão gostaria de chegar ao fundo da sua memória, saber por onde andou, por que rios, por que mares, saber se já escorregou pelo vidro de uma janela do quarto de dois amantes ou pelos beirais de um castelo de encantar ou apenas pelas ruínas de um casebre de pobre. Queria saber tudo desde que o tempo a fez cair do céu pela primeira vez até ao momento em que tocou na minha pele.
Se eu pudesse partilhar o espaço e o tempo com uma gota de chuva gostaria de cair sem vento sobre a árvore mais alta da floresta, folha sob folha, ramo sob ramo até me enterrar no chão tenro e ir cada vez mais fundo em busca de outras gotas em forma de fio e de rio e de mar e depois diluir-me, tornar-me indistinto sem deixar de ser único e esperar que uma brisa quente, um sopro de Sol me transformasse em ar e subisse devagarinho, bem devagarinho em direcção às estrelas até ser capturado pelo vento em flocos de nuvem e reiniciar a viagem.
Se eu pudesse explicar a chuva num dia de Sol perderia por palavras a magia de um arco colorido que tem numa ponta um sonho de menino e na outra o inalcançável. Nunca sei dizer em que ponta está o sonho e caminho sempre onde nunca consigo chegar e a chuva pára e ficam só os brilhos nas manchas de água a reflectirem o meu desejo.
Se eu pudesse dançar à chuva de gabardine comprida e chapéu de varetas ocas regressaria no tempo a um tempo fechado numa caixa de madeira sem mais outras cores que o preto e o branco e diferentes cinzentos e quem sabe não começaria a cantar com um sorriso nos olhos e nos lábios.
Se eu pudesse comandar em fúria a chuva lavaria todos os males e os meus pecados e restaria puro e vazio num Mundo sem graça e sem homens. Seria divino sem crentes e sem outras catedrais que não aquelas que se formam nas clareiras das árvores perenes.
Se eu pudesse ficar nu debaixo de uma chuva que fosse quente como a água que escorre em chuveiro, forte e compassada sobre os ombros e de braços bem abertos, gota a gota, poro a poro, isolava-me de pensar, de sentir, de me tentar perceber ou explicar.
Se eu pudesse imaginar uma chuva que não fosse chuva feita de água e de tempo iria fazê-la de algo doce e suspenso que se pudesse afastar como uma cortina que dá acesso a um outro palco. Gostaria de encontrar nesse palco um bando de actores interagindo numa performance sem ensaio, representando a minha vida em pantomina. Gostaria de ver a plateia vazia de público e cheia de letras e palavras e frases sempre a trocar de lugar e formando histórias dentro das histórias.
Se eu pudesse escolher que a chuva fosse só chuva ela seria a causa e a razão da vida e o desejo ou desespero de quem a tem ou de quem lhe falta e nada mais.