Avança tuas mãos
incandescentes
por sobre todos
os interstícios
do meu corpo.
Deixa rasto de fogo
dilacerante
à tua passagem
fazendo-me
pasto de chamas.
Faz-me rugir
sedento
cada poro calcinado
nesta dança
em labareda.
Suga sem tréguas
inclemente
todo o ar
deste incêndio
em fúria.
Extingue o vulcão
luminescente
em vapor de suor
que fervilha
em mim.
Arrasa impiedoso
arrogante
todos os sentidos
até à ruína
da devastação.
E faz de mim
terra queimada
em flor.
“I sold my soul to the devil”. As palavras ecoam-me na cabeça até saírem pela boca, como um verso repetido de uma canção de que só me lembrava esta linha. “I sold my soul to the devil”. Se não se pode iludir a morte, poderia eu tentar iludir o diabo? Esconder a minha alma para que não a pudesse cobrar, simular aos olhos do demo a minha continuidade em vida mesmo depois de morto.
Troquei a alma por um punhado de sucesso, nem sequer estava desesperado faminto ou sedento nem desalentado somente quis atalhar caminho e não perder mais tempo. Não fiquei imensamente rico nem dormi com quem quis dormir, foi apenas um punhado de sucesso e agora não queria pagar o preço. Clamei por deus que me acudisse.
Imaginei que o melhor meio de falar com deus era de joelhos com os dedos das mãos entrelaçados e num tom de súplica. Queria propor a deus que roubasse uma alma ao diabo e que me deixasse continuar vivo mesmo depois de morto. Sabia da disputa de deus e do diabo na contabilidade das almas dos homens e por isso parecia-me um acordo justo, vendi a alma ao diabo mas só a poderia cobrar depois de morrer, assim pedi a deus que aceitasse agora uma hipoteca pela minha alma na troca da ilusão da vida e que juntos ludibriássemos o diabo. Tinha a certeza que deus teria sentido de humor e que tiraria algum prazer em enganar o rival. Estive de joelhos em súplica mas deus não me ouviu.
Falhado o contrato com deus, restava-me a possibilidade de tentar esconder a minha alma longe dos olhos do diabo. Alguém me disse que o mundo dos sonhos é feito de almas perdidas e tentei deixá-la por lá num sonho esquecido. Andei assim neste mundo meses vagueando sem alma mas os sons não me soavam, nem os cheiros me cheiravam, nem os sabores me sabiam, nem as imagens me imaginavam, nem os toques me sentiam e de repente o punhado de sucesso se pouco sentido fazia, passou a fazer nenhum e voltei a mergulhar nas águas dos sonhos e procurei pela minha alma dias a fio até a encontrar quase tão murcha como a sombra de algo que já morreu. Trouxe-a de volta.
Quis devolver ao diabo o punhado de sucesso mas o diabo não aceita reembolsos. Quis fazer ver ao diabo que a minha alma era coisa de pouca valia mas o diabo riu-se e disse-me que pouco era mais que nada. Quis implorar ao diabo mas o diabo não é piedoso mas somente um fornecedor de penitências. Por fim olhou para mim e perguntou-me se queria renegociar a minha alma e eu disse que sim e tornei-me a seu serviço um angariador de almas, troquei a minha por outras, estranhamente não deixei de ter medo da morte.
Preparo-me. Há muito tempo que não fazia isto, é daquelas coisas que nunca gostei de fazer. Mas ele insiste que eu vá, para que eu veja o outro lado, o outro objectivo de o fazer, as outras sensações que eu nunca senti.
Acho uma certa piada, pois nunca lhe contei porque é que não gosto. Apenas disse "Detesto" e ele decidido disse "Vem comigo. Vais ver que é muito diferente daquilo que detestas." Eu fiquei sem entender, há coisas que se gosta ou não se gosta e eu detesto. Ao pensar nisto encolho os ombros, e sento-me à espera que ele bata à porta.
Não tenho que esperar muito, ele é sempre pontual. Sinto um misto de nervosismo pela sua chegada, e alegria por ver o seu rosto. Que me é sempre agradável. Mas acabo a duvidar que ele consiga fazer-me ver, ou sentir a coisa de forma diferente da que eu sinto. Além do mais ele não sabe porque é que eu não gosto, aliás, detesto, assim tanto. Não sabe que foi porque mo obrigaram a fazer, que me fustigaram para o fazer, e me privaram de sentir isto de uma forma normal, de me dar a hipótese de decidir que gosto ou não. Assim apenas me restou uma hipótese. Detestar.
Começamos, eu queria levar música, e ele diz que não, a música estraga a experiência, tem de ser sem música, temos de sentir os passos as coisas à volta, as pessoas a cumprimentar-nos, a sorrir, como lhe acontece sempre que o vêem a ele. Comigo não sei se sorririam, se apenas me ignorariam, eu não me misturo assim com as coisas as pessoas.
Fazemos o caminho em silêncio e surpreendentemente eu sinto-me bem. Gosto de ver como as pessoas nos cumprimentam, e sorrio-lhes com ele, ao mesmo tempo, no mesmo compasso do sorrir. Sinto as folhas outonais, secas, a estalar debaixo dos meus pés por menos de segundos, o tempo que me demoro a pisá-las, e o som do vento a fazer dançar as folhas que ainda se sustêm nas árvores.
E gosto. Pela primeira vez sinto prazer nisto, depois de tantos anos a tentar e sempre a detestar. Pergunto-me se o conseguiria fazer sozinha, e prometo-me que vou tentar. Começo a ficar cansada, e noto que ele também, mas a sua persistência em continuar, faz-me querer segui-lo sem reclamar. Ele vale a pena isto. O esforço de ficar ao seu lado. Chegamos a um riacho, depois de passar pela cidade, pela estrada, pelo bosque, e ele diz, é aqui. E senta-se. Eu sento-me com ele, convidada pelo gesto silencioso, e fico à espera. A ouvir a água. E é apenas isso que ficamos a fazer, enquanto os corações retomam um ritmo normal, enquanto passamos do calor ao friozinho que nos faz querer aquecer num abraço.
Hoje vou tentar. Sozinha. Pelo mesmo caminho. E não sei se vai ser igual pois ele não está. Mas sei que onde quer que esteja, poderei sentir o seu coração bater com o meu, através das árvores, do vento das folhas, da água a correr no riacho. E foi este o tesouro que ele me deu.
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