Súplica  

Posted by mf in

Avança tuas mãos
incandescentes
por sobre todos
os interstícios
do meu corpo.

Deixa rasto de fogo
dilacerante
à tua passagem
fazendo-me
pasto de chamas.

Faz-me rugir
sedento
cada poro calcinado
nesta dança
em labareda.

Suga sem tréguas
inclemente
todo o ar
deste incêndio
em fúria.

Extingue o vulcão
luminescente
em vapor de suor
que fervilha
em mim.

Arrasa impiedoso
arrogante
todos os sentidos
até à ruína
da devastação.

E faz de mim
terra queimada
em flor.

Mercador de almas  

Posted by LBJ in


“I sold my soul to the devil”. As palavras ecoam-me na cabeça até saírem pela boca, como um verso repetido de uma canção de que só me lembrava esta linha. “I sold my soul to the devil”. Se não se pode iludir a morte, poderia eu tentar iludir o diabo? Esconder a minha alma para que não a pudesse cobrar, simular aos olhos do demo a minha continuidade em vida mesmo depois de morto.

Troquei a alma por um punhado de sucesso, nem sequer estava desesperado faminto ou sedento nem desalentado somente quis atalhar caminho e não perder mais tempo. Não fiquei imensamente rico nem dormi com quem quis dormir, foi apenas um punhado de sucesso e agora não queria pagar o preço. Clamei por deus que me acudisse.

Imaginei que o melhor meio de falar com deus era de joelhos com os dedos das mãos entrelaçados e num tom de súplica. Queria propor a deus que roubasse uma alma ao diabo e que me deixasse continuar vivo mesmo depois de morto. Sabia da disputa de deus e do diabo na contabilidade das almas dos homens e por isso parecia-me um acordo justo, vendi a alma ao diabo mas só a poderia cobrar depois de morrer, assim pedi a deus que aceitasse agora uma hipoteca pela minha alma na troca da ilusão da vida e que juntos ludibriássemos o diabo. Tinha a certeza que deus teria sentido de humor e que tiraria algum prazer em enganar o rival. Estive de joelhos em súplica mas deus não me ouviu.

Falhado o contrato com deus, restava-me a possibilidade de tentar esconder a minha alma longe dos olhos do diabo. Alguém me disse que o mundo dos sonhos é feito de almas perdidas e tentei deixá-la por lá num sonho esquecido. Andei assim neste mundo meses vagueando sem alma mas os sons não me soavam, nem os cheiros me cheiravam, nem os sabores me sabiam, nem as imagens me imaginavam, nem os toques me sentiam e de repente o punhado de sucesso se pouco sentido fazia, passou a fazer nenhum e voltei a mergulhar nas águas dos sonhos e procurei pela minha alma dias a fio até a encontrar quase tão murcha como a sombra de algo que já morreu. Trouxe-a de volta.

Quis devolver ao diabo o punhado de sucesso mas o diabo não aceita reembolsos. Quis fazer ver ao diabo que a minha alma era coisa de pouca valia mas o diabo riu-se e disse-me que pouco era mais que nada. Quis implorar ao diabo mas o diabo não é piedoso mas somente um fornecedor de penitências. Por fim olhou para mim e perguntou-me se queria renegociar a minha alma e eu disse que sim e tornei-me a seu serviço um angariador de almas, troquei a minha por outras, estranhamente não deixei de ter medo da morte.

Terra  

Posted by Bruno Fehr in

Perseguido por Kamaers, Tzallus e por todas as raças e impérios do universo conhecido, Azelmus Krest procura refugio em Taenaris, o sistema sagrado com um único planeta. Este planeta é um local de paz, um local seguro. É o único sistema que não tem guerra, não há armas e que toda a vida do universo se respeita como sagrada. Os seus habitantes Taenis, são eunucos de aparência feminina, capazes de com o seu toque aliviar qualquer dor, qualquer ferimento, curar qualquer doença física ou mental. Para viver em Taenaris as pessoas têm de prescindir de todas as suas posses, têm de prescindir do seu passado e aceitar a linha de pensamento Taenis, baseado no amor por todas as raças e renuncia à violência.

Mas nem em Taenaris, Azelmus obteve refugio, não por a cabeça de Azelmus estar a prémio, não por se recusar a prescindir do amor proibido por Gorty, mas sim por terem gerado um filho, meio Kamaer, meio Tzallu, um ser que nunca ninguém imaginou ser possível, um ser de um poder que nem os Taenis acreditavam poder controlar. Cameos Krest, uma criança de 3 meses, temida até por aqueles que eram vistos como Deuses.

“É um bebé, uma criança! Não percebem?”

Os Taenis não deram ouvidos e ordenaram que partisse.
Azelmus tinha ódio estampado na cara, expressão que fez com que todos os presentes, que habitam Taenaris virassem a cara, uma expressão de um sentimento que não existia naquele local.

Ao virar costas em direcção à sua gigantesca nave real, Azelmus é parado por Zorkan que lhe passou um pequeno transponder. Azelmus pega nele e segue o seu caminho.

Já na nave e ao sair da orbita de Taenaris, Azelmus liga o transponder e imediatamente vê-se na presença do sábio Zorkan, aquele que é o mais velho dos Taenis, aquele que dizem ter atingido o ponto máximo de iluminação, aquele que esteve certo dia às portas do penta-verso, o mítico local que poucos acreditam existir, onde quem entra atinge o conhecimento e poder totais para o bem ou para o mal, dependendo da sua essência. Mas isto por um preço, um preço que é desconhecido, pois ninguém que tentou entrar alguma vez saiu com vida. Zorkan esteve às portas do penta-verso e não entrou após ver todos os seus companheiros morrerem na tentativa de entrada. Zorkan sentiu-se iluminado só por ali estar, sentiu que aquele era o conhecimento máximo que o Penta-Verso lhe permitia e regressou.

Zorkan, deu a Azelmus as coordenadas de um campo de asteróides ainda dentro do sistema Taenaris, e por isso ninguém o poderia atacar lá, nem ninguém entraria lá com qualquer nave, mas a sua nave real Kamaer tinha a manobrabilidade necessária para atravessar esse campo de asteróides e a velocidade para evitar os danos da nuvem de gases nucleares que os acompanha. Zorkan garantiu que Azelmus encontraria lá a paz que procura.

Azelmus assim o fez. Com a destreza de um piloto Kamaer furou pelo campo de asteróides e chegou ao seu núcleo, a armadura da sua nave ficou intacta e lá, encontrou o paraíso. Aquilo que outrora foi um pequeno sistema solar, dominado por uma civilização que falhou, no seu centro um único sol com um único planeta de pequenas dimensões na sua orbita.

“Mas isto... isto...” gaguejava Azelmus ao aproximar-se do mais belo planeta que alguma vez tinha visto.

“Onde estamos?”, Perguntou Gorty fascinada, pela imensa quantidade de água e vegetação.

“Estamos no sistema solar humano... não percebo...”, dizia Anzelmus.

“Mas tudo isto não tinha sido destruído?"

“Sim, de acordo com os sábios, os humanos auto-destruíram-se numa guerra entre irmãos e uma tempestade nuclear destruiu todos os planetas do sistema, mas...”

“Mas está ainda aqui um”

“Sim a Terra, com a partida dos poucos humanos que sobreviveram à tempestade nuclear, o planeta recuperou”

“Como pode um planeta recuperar se são os habitantes que dão vida aos planetas?”

“Não aqui. Aqui o planeta é vida! Este planeta é uma forma de vida e não é comparável a nenhum dos milhões de planetas que conhecemos”

Gorty, tinha já ouvido falar do mítico planeta azul nas aulas de história galáctica e de como a raça humana destruiu tudo aquilo de que dependia. De como em lutas sem sentido entre vizinhos e irmãos por pedaços de terra que já eram seus, colocaram em causa a sua existência. Ela conhecia alguns humanos, que hoje vivem a centenas anos luz deste local, são os Wardacs. Uma raça guerreira mais fraca que os Kamaer e que os Tzallus, mas que usa da diplomacia como a sua mais forte arma, estratégias militares consideradas pouco honradas, abusando da noção de honra e do valor de palavra partilhado entre civilizações. Os Wardacs vivem hoje prisioneiros de si próprios, presos a equipamentos de suporte de vida, pois dependem de oxigénio, não tendo a capacidade de sobreviver sem ele.

A grande nave Kamaer atinge o solo. Fascinados com tudo o que os rodeia Azelmus e Gorty saem da nave, tocam a vegetação, assimilam o som de água a correr, sentem o vento na pele.

Um estrondo ecoa. Um som novo, que parecia a Azelmus ser uma pequena explosão de gás na sua nave. Gorty segundos depois, cai em seus braços. Azelmus pega nela chocado, ele não percebia o que se estava a passar, não percebia porque desfalecia Gorty. Nisto, vê seres bípedes cobertos por primitivas roupas com estranhos objectos metálicos na mão. Azelmus usa o seu desparticularizador, atingindo diversos desses seres, até que ele próprio cai. O motivo? Um projéctil de uma arma primitiva de fabrico humano, chamada de espingarda. Os seres bípedes eram humanos que de alguma forma ainda existiam neste planeta.

Azelmus e Gorty estavam mortos, Cameos Krest chorava dentro da nave e é encontrado pelos pequenos humanos que pareciam felizes pela chacina. A nave Kamaer não se auto-destruiu como seria de prever com a morte de Azelmus, a nave não estava ligada a ele, não era dele, a nave era sim de Cameos Krest.

Quando um dos humanos se preparava para matar Cameos, o pequeno bebé pára o seu choro e olha directamente para o humano que hesita. Essa hesitação foi o suficiente para que a sua mão criminosa fosse parada por um humano diferente, com menos pêlos, olhar mais doce, voz mais fina. Um elemento da outra espécie humana conhecida como mulher. Essa mulher pegou no pequeno Cameos e partiu com ele nos braços.

(excerto de Taenaris, por Bruno Fehr)

 

Posted by Jane Doe in

Preparo-me. Há muito tempo que não fazia isto, é daquelas coisas que nunca gostei de fazer. Mas ele insiste que eu vá, para que eu veja o outro lado, o outro objectivo de o fazer, as outras sensações que eu nunca senti.

Acho uma certa piada, pois nunca lhe contei porque é que não gosto. Apenas disse "Detesto" e ele decidido disse "Vem comigo. Vais ver que é muito diferente daquilo que detestas." Eu fiquei sem entender, há coisas que se gosta ou não se gosta e eu detesto. Ao pensar nisto encolho os ombros, e sento-me à espera que ele bata à porta.

Não tenho que esperar muito, ele é sempre pontual. Sinto um misto de nervosismo pela sua chegada, e alegria por ver o seu rosto. Que me é sempre agradável. Mas acabo a duvidar que ele consiga fazer-me ver, ou sentir a coisa de forma diferente da que eu sinto. Além do mais ele não sabe porque é que eu não gosto, aliás, detesto, assim tanto. Não sabe que foi porque mo obrigaram a fazer, que me fustigaram para o fazer, e me privaram de sentir isto de uma forma normal, de me dar a hipótese de decidir que gosto ou não. Assim apenas me restou uma hipótese. Detestar.

Começamos, eu queria levar música, e ele diz que não, a música estraga a experiência, tem de ser sem música, temos de sentir os passos as coisas à volta, as pessoas a cumprimentar-nos, a sorrir, como lhe acontece sempre que o vêem a ele. Comigo não sei se sorririam, se apenas me ignorariam, eu não me misturo assim com as coisas as pessoas.

Fazemos o caminho em silêncio e surpreendentemente eu sinto-me bem. Gosto de ver como as pessoas nos cumprimentam, e sorrio-lhes com ele, ao mesmo tempo, no mesmo compasso do sorrir. Sinto as folhas outonais, secas, a estalar debaixo dos meus pés por menos de segundos, o tempo que me demoro a pisá-las, e o som do vento a fazer dançar as folhas que ainda se sustêm nas árvores.

E gosto. Pela primeira vez sinto prazer nisto, depois de tantos anos a tentar e sempre a detestar. Pergunto-me se o conseguiria fazer sozinha, e prometo-me que vou tentar. Começo a ficar cansada, e noto que ele também, mas a sua persistência em continuar, faz-me querer segui-lo sem reclamar. Ele vale a pena isto. O esforço de ficar ao seu lado. Chegamos a um riacho, depois de passar pela cidade, pela estrada, pelo bosque, e ele diz, é aqui. E senta-se. Eu sento-me com ele, convidada pelo gesto silencioso, e fico à espera. A ouvir a água. E é apenas isso que ficamos a fazer, enquanto os corações retomam um ritmo normal, enquanto passamos do calor ao friozinho que nos faz querer aquecer num abraço.


Hoje vou tentar. Sozinha. Pelo mesmo caminho. E não sei se vai ser igual pois ele não está. Mas sei que onde quer que esteja, poderei sentir o seu coração bater com o meu, através das árvores, do vento das folhas, da água a correr no riacho. E foi este o tesouro que ele me deu.