Cem  

Posted by Jane Doe


Acorda. É tarde, de tarde, está quase a anoitecer. Estica-se na cama, gostava de poder dormir mais, mas precisa estar perfeita. Procura o telemóvel, que dorme sempre ao lado, e vê as horas. Tem tempo. Talvez um banho, na mágica banheira do quarto de hotel consiga disfarçar a noite passada. Dói-lhe a cabeça. Ressaca, algo nada bom para o que vai fazer mais tarde nesse dia.

O telemóvel tem muitas mensagens, muitas chamadas perdidas. Decide não olhar. Sabe a que se deve tal coisa. Afinal, é o dia do seu aniversário. As pessoas nunca poderiam deixar de se lembrar. Mas ela não quer ver, não quer ler nada que a faça vacilar.
Mentiu a todos. Disse que tinha de fazer um trabalho e que lhe iria roubar o fim de semana, e por isso não poderia sair. Saiu a noite anterior, bebeu, riu, sentiu-se acolhida nos abraços amigos. Foi dormir a um hotel longe, pois precisava tornar credível a sua desculpa. E ficava bem mais perto.

Precisa de um comprimido. Alguma coisa para a ressaca. Talvez precise de alguma droga, que a ajude a ir em frente sem medo. Ou com ele disfarçado de confiança. Sabe onde está o comprimido, sabe onde está a droga que ela lhe deu. Só em caso de desespero, disse ela. Não me deixes na mão.
Não deixaria. Não sabia quanto lhe iria render a noite mas saberia que bem mais dos 300 euros que ela gastou no vestido, na mala e nos sapatos. Valia a pena.

Ela tinha-lhe contado há algum tempo atrás. Só tu sabes, dizia. E preciso que não digas a ninguém. Nunca abriu a boca, e carregou o peso daquele segredo que ela lhe confiou. E muitas vezes, ao ver o estilo de vida que ela levava, ponderou se não seria o caminho.

Sexo. Era algo que não sentia. Era mecânico, e não gostava desse sentir-se um robot mecanizado com uma memória para sexo. Mas tinha o corpo. E o sexo era uma realidade de que a maioria gostava. E dava muito, mas muito dinheiro. Era o que precisava.

Ligou-lhe, um dia, a ela, e disse que queria entrar. Não precisava de contar a mais ninguém, eram amigas de infância, guardariam o segredo uma da outra. Ela disse-lhe que não, não a queria ali, e tentou dissuadi-la mas já tinha tomado a decisão. Iria entrar. Ela, tristemente, observando-a, fez uma chamada, e confirmou algumas coisas. Dia 19 de Setembro, no hotel Ritz, em Lisboa. Pode ser? Respondeu que sim, podia ser. Era o seu aniversário.

Estava um pouco nervosa. Tomou o comprimido, olhou para o saquinho pequeno, branco enrolado, à espera de ser usado. "Não. Isto vai ter de me doer." Preparou a banheira, e sorriu ante um momento de relax. Lá dentro treinava mentalmente os passos. O entrar no restaurante, a postura de classe que sabia que iria ter, e a conversa - em inglês - que poderia desenvolver. Não conseguia ficar relaxada na banheira. Acabou a duchar-se, e começou os preparativos. Todos, os que uma mulher deve ter. Cremes, óleos, o cabelo. Olhou o vestido, preto, simples, que lhe custou os olhos da cara. Vestiu-se. Estava mais bonita que nunca. Por dinheiro.

Volta a olhar o telemóvel, o tempo já estava um pouco curto, e apressou-se. Uma maquilhagem suave, e provocadora, um casaco, e o táxi à sua espera. O saquinho branco na mão. Mas que nunca iria chegar a usar.

A cidade, nocturna, passa-lhe pelos olhos, que vão distantes, pensando em cada detalhe de tudo, a vontade, que vai distante, no dia de amanha.

Chega ao restaurante, todos os passos decorados. Sabe a mesa e observa. Não tão velho quanto isso. Talvez consiga não ter nojo e fazer tudo bem, sorriu para si mesma. Imaginou-se sob o efeito do pó maravilha e avançou confiante. O desconhecido, que a esperava, levanta-se cortezmente, e dá-lhe passo para se sentar. Ela agradece. E de repente fica sem saber o que dizer e só pensa no saquinho. Ele sorri, afável. "Sabe que é a minha primeira vez."

Ele escreve algo no guardanapo e passa-lho. Ela sabe o que está lá dentro. Sabe que é o ponto onde pode desistir ou não. Recebe o guardanapo, que percorreu o trajecto até si, arrastado por uma mão já algo enrugada. Uma imagem passa-lhe pela mente, sente um arrepio. Abre o guardanapo. Acena com a cabeça.

"Feliz aniversário para mim."

[Guardanapo: 5.000 euros. One night. Everything.]

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8 Devaneios

Feliz aniversário para ti :)

Beijos querida amiga

19 de setembro de 2009 às 09:45

Wow!

Fantástico, o texto!

E não me vou pôr a divagar sobre "dinheiro fácil", e se é assim tão "fácil" ou não... ;)

Também gostei do desenho MAS sabes que tens outros melhores... Coloridos... :p

Beijos, my friend :)

19 de setembro de 2009 às 09:54

LBJ:

Obrigada:)

Foste o primeiro, sabias?

Quer dizer... tirando o pessoal cá de casa, claro!

:)

19 de setembro de 2009 às 11:47

Fada:

Sabias que é, a meu ver, um dos piores textos que escrevi até hoje no Prisão de Palavras?

Pois é.

Outros virão e espero que muito, mas muito melhores.

Em relação a desenhos... Eu sei, mas os coloridos não se encaixam neste texto, além de que este é uma ilustração, que fiz para matar as saudades que tinha do programa com que a fiz...
:)

19 de setembro de 2009 às 11:49

Felicidades, e as palavras simplesmente parecem fluir, é na escrita mais simples que por vezes encontra-mos as mais belas lições de vida:)
beijinhos

20 de setembro de 2009 às 01:19

Jane Doe,

Eu gostei do texto e até da temática envolvente, mas como não ligas peva a elogios não elogio, tb não considero que seja o pior dos textos , acho que faz parte dos melhores.

21 de setembro de 2009 às 15:33

Palma da Mão:

Obrigada:) Felicidades para ti também.;)

É na escrita que as encontramos, pois é a escrita que muitas vezes as traduz. Mas nunca é só.

:)

21 de setembro de 2009 às 15:46

I.D.Pena:

Eu ligo a elogios, simplesmente sou demasiado critíca e nem sempre os tomo como verdadeiros para mim - ainda que lhes dê o merecido valor.

Explico o porquê dos piores:

Porque tive a ideia na cabeça tempo demais, e quando a passei para o papel foi porque olhei o relógio e calendário e já faltava quase nada. Foi escrito sem sentimento, com as palavras automatizadas, etc.
Claro podia escolher um texto entre os tantos que tenho guardados, mas faço sempre questão de trazer algo novo mesmo até para mim.

E este foi escrito à pressa, de forma oca, meio corrida.

Ainda bem que gostaram, mas isso não invalida ser para mim, dos piores.

21 de setembro de 2009 às 15:50

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