O telemóvel tem muitas mensagens, muitas chamadas perdidas. Decide não olhar. Sabe a que se deve tal coisa. Afinal, é o dia do seu aniversário. As pessoas nunca poderiam deixar de se lembrar. Mas ela não quer ver, não quer ler nada que a faça vacilar.
Mentiu a todos. Disse que tinha de fazer um trabalho e que lhe iria roubar o fim de semana, e por isso não poderia sair. Saiu a noite anterior, bebeu, riu, sentiu-se acolhida nos abraços amigos. Foi dormir a um hotel longe, pois precisava tornar credível a sua desculpa. E ficava bem mais perto.
Precisa de um comprimido. Alguma coisa para a ressaca. Talvez precise de alguma droga, que a ajude a ir em frente sem medo. Ou com ele disfarçado de confiança. Sabe onde está o comprimido, sabe onde está a droga que ela lhe deu. Só em caso de desespero, disse ela. Não me deixes na mão.
Não deixaria. Não sabia quanto lhe iria render a noite mas saberia que bem mais dos 300 euros que ela gastou no vestido, na mala e nos sapatos. Valia a pena.
Ela tinha-lhe contado há algum tempo atrás. Só tu sabes, dizia. E preciso que não digas a ninguém. Nunca abriu a boca, e carregou o peso daquele segredo que ela lhe confiou. E muitas vezes, ao ver o estilo de vida que ela levava, ponderou se não seria o caminho.
Sexo. Era algo que não sentia. Era mecânico, e não gostava desse sentir-se um robot mecanizado com uma memória para sexo. Mas tinha o corpo. E o sexo era uma realidade de que a maioria gostava. E dava muito, mas muito dinheiro. Era o que precisava.
Ligou-lhe, um dia, a ela, e disse que queria entrar. Não precisava de contar a mais ninguém, eram amigas de infância, guardariam o segredo uma da outra. Ela disse-lhe que não, não a queria ali, e tentou dissuadi-la mas já tinha tomado a decisão. Iria entrar. Ela, tristemente, observando-a, fez uma chamada, e confirmou algumas coisas. Dia 19 de Setembro, no hotel Ritz, em Lisboa. Pode ser? Respondeu que sim, podia ser. Era o seu aniversário.
Estava um pouco nervosa. Tomou o comprimido, olhou para o saquinho pequeno, branco enrolado, à espera de ser usado. "Não. Isto vai ter de me doer." Preparou a banheira, e sorriu ante um momento de relax. Lá dentro treinava mentalmente os passos. O entrar no restaurante, a postura de classe que sabia que iria ter, e a conversa - em inglês - que poderia desenvolver. Não conseguia ficar relaxada na banheira. Acabou a duchar-se, e começou os preparativos. Todos, os que uma mulher deve ter. Cremes, óleos, o cabelo. Olhou o vestido, preto, simples, que lhe custou os olhos da cara. Vestiu-se. Estava mais bonita que nunca. Por dinheiro.
Volta a olhar o telemóvel, o tempo já estava um pouco curto, e apressou-se. Uma maquilhagem suave, e provocadora, um casaco, e o táxi à sua espera. O saquinho branco na mão. Mas que nunca iria chegar a usar.
A cidade, nocturna, passa-lhe pelos olhos, que vão distantes, pensando em cada detalhe de tudo, a vontade, que vai distante, no dia de amanha.
Chega ao restaurante, todos os passos decorados. Sabe a mesa e observa. Não tão velho quanto isso. Talvez consiga não ter nojo e fazer tudo bem, sorriu para si mesma. Imaginou-se sob o efeito do pó maravilha e avançou confiante. O desconhecido, que a esperava, levanta-se cortezmente, e dá-lhe passo para se sentar. Ela agradece. E de repente fica sem saber o que dizer e só pensa no saquinho. Ele sorri, afável. "Sabe que é a minha primeira vez."
Ele escreve algo no guardanapo e passa-lho. Ela sabe o que está lá dentro. Sabe que é o ponto onde pode desistir ou não. Recebe o guardanapo, que percorreu o trajecto até si, arrastado por uma mão já algo enrugada. Uma imagem passa-lhe pela mente, sente um arrepio. Abre o guardanapo. Acena com a cabeça.
"Feliz aniversário para mim."