A última noite da minha primeira noite  

Posted by Bruno Fehr in

Estou sozinho no meio de todo este frio, tudo à minha volta está gelado, tudo tão branco. Sou um homem na neve sem forças para lutar mas luto internamente contra mim mesmo querendo livrar-me destes pensamentos que não entendo.
Se isto é um sonho eu quero acordar, quero gritar bem alto, quero chorar.

Tudo começou no dia 21 de Janeiro de 1899 durante um passeio ao fim da tarde durante uma visita a Oulu, o local mais bonito do mundo. Escureceu e continuei a caminhada por uma cidade que após o por-do-sol parece fantasma. Nas janelas vejo luzes quentes que ninguém quer deixar. Fazia-me acompanhar por uma garrafa de Stolichnaya, pois nestas temperaturas a vodka é a nossa melhor amiga. Já ébrio entro numa rua escura e foi aí que escutei uma bela melodia. Atraído e guiado por ela entrei numa pequena taberna iluminada somente por velas que não me permitiam ver mais do que vultos sentados nos cantos da sala.
Pedi um vodka, e sem me responder o taberneiro trouxe-me absinto, notei quando o provei, Pontarlier sem dúvida.
Olho para o ponto de onde a música vem e vejo um vulto nada mais. Há medida que a minha visão de habitua à escuridão vejo que se trata de uma mulher, alta, longos cabelos negros, cara branca sem expressão, uma mulher linda da qual não consigo desviar o olhar, os olhos dela estão fechados como que visualizando o choro que sai do seu violino.
Pergunto ao taberneiro o nome dela ao que ele responde: "Taija - a violinista".
A música termina, ela abre os olhos revelando um azul incrivelmente claro e caminha na minha direcção.

Fogo. Noite. Dia. Céu. Pessoas. Frio. Calor. Palavras soltas. Imagens sem nexo. Risos. Choros. Gritos. Gemidos. Flashs do meu passado. Flashs do que não vivi. Cheiro a sexo.

Quando recuperei a consciência estava despido numa cama desconhecida em lençóis ensanguentados. Desorientado saí a correr sem rumo, dei por mim rodeado de árvores e gritei, ri, chorei em dor, sentia-me a partir de mim mesmo, sentia-me mais forte que nunca. Sentia-me vivo mas morto por dentro, e adormeci.

Acordo incomodado pela aurora matinal, sentindo-me preso num local perdido no tempo, preso a uma vida passada, preso num pesadelo do qual não consigo acordar, sem saídas à vista sem forças para gritar. Gritei enquanto tive voz e ninguém me ouviu, ninguém quis saber, ninguém me respondeu.
Sinto que já vivi e que já morri mas que de certa forma revivo tudo novamente. Não sei dizer precisamente quando mas há muito tempo eu fui o que sou agora, um homem na neve, um homem de neve, um homem gelado.

Os primeiros raios de sol permitem-me ver onde estou, e ver a minha roupa ensanguentada, junto a mim uma lápide onde leio: „Taija, 31.12.1776 – 21.01.1799“, nome e data circundado pelo desenho de um violino e uma pequena pauta musical esculpida na pedra com o título:
"Pahoittelen, Basiliüs".



Cem  

Posted by Jane Doe


Acorda. É tarde, de tarde, está quase a anoitecer. Estica-se na cama, gostava de poder dormir mais, mas precisa estar perfeita. Procura o telemóvel, que dorme sempre ao lado, e vê as horas. Tem tempo. Talvez um banho, na mágica banheira do quarto de hotel consiga disfarçar a noite passada. Dói-lhe a cabeça. Ressaca, algo nada bom para o que vai fazer mais tarde nesse dia.

O telemóvel tem muitas mensagens, muitas chamadas perdidas. Decide não olhar. Sabe a que se deve tal coisa. Afinal, é o dia do seu aniversário. As pessoas nunca poderiam deixar de se lembrar. Mas ela não quer ver, não quer ler nada que a faça vacilar.
Mentiu a todos. Disse que tinha de fazer um trabalho e que lhe iria roubar o fim de semana, e por isso não poderia sair. Saiu a noite anterior, bebeu, riu, sentiu-se acolhida nos abraços amigos. Foi dormir a um hotel longe, pois precisava tornar credível a sua desculpa. E ficava bem mais perto.

Precisa de um comprimido. Alguma coisa para a ressaca. Talvez precise de alguma droga, que a ajude a ir em frente sem medo. Ou com ele disfarçado de confiança. Sabe onde está o comprimido, sabe onde está a droga que ela lhe deu. Só em caso de desespero, disse ela. Não me deixes na mão.
Não deixaria. Não sabia quanto lhe iria render a noite mas saberia que bem mais dos 300 euros que ela gastou no vestido, na mala e nos sapatos. Valia a pena.

Ela tinha-lhe contado há algum tempo atrás. Só tu sabes, dizia. E preciso que não digas a ninguém. Nunca abriu a boca, e carregou o peso daquele segredo que ela lhe confiou. E muitas vezes, ao ver o estilo de vida que ela levava, ponderou se não seria o caminho.

Sexo. Era algo que não sentia. Era mecânico, e não gostava desse sentir-se um robot mecanizado com uma memória para sexo. Mas tinha o corpo. E o sexo era uma realidade de que a maioria gostava. E dava muito, mas muito dinheiro. Era o que precisava.

Ligou-lhe, um dia, a ela, e disse que queria entrar. Não precisava de contar a mais ninguém, eram amigas de infância, guardariam o segredo uma da outra. Ela disse-lhe que não, não a queria ali, e tentou dissuadi-la mas já tinha tomado a decisão. Iria entrar. Ela, tristemente, observando-a, fez uma chamada, e confirmou algumas coisas. Dia 19 de Setembro, no hotel Ritz, em Lisboa. Pode ser? Respondeu que sim, podia ser. Era o seu aniversário.

Estava um pouco nervosa. Tomou o comprimido, olhou para o saquinho pequeno, branco enrolado, à espera de ser usado. "Não. Isto vai ter de me doer." Preparou a banheira, e sorriu ante um momento de relax. Lá dentro treinava mentalmente os passos. O entrar no restaurante, a postura de classe que sabia que iria ter, e a conversa - em inglês - que poderia desenvolver. Não conseguia ficar relaxada na banheira. Acabou a duchar-se, e começou os preparativos. Todos, os que uma mulher deve ter. Cremes, óleos, o cabelo. Olhou o vestido, preto, simples, que lhe custou os olhos da cara. Vestiu-se. Estava mais bonita que nunca. Por dinheiro.

Volta a olhar o telemóvel, o tempo já estava um pouco curto, e apressou-se. Uma maquilhagem suave, e provocadora, um casaco, e o táxi à sua espera. O saquinho branco na mão. Mas que nunca iria chegar a usar.

A cidade, nocturna, passa-lhe pelos olhos, que vão distantes, pensando em cada detalhe de tudo, a vontade, que vai distante, no dia de amanha.

Chega ao restaurante, todos os passos decorados. Sabe a mesa e observa. Não tão velho quanto isso. Talvez consiga não ter nojo e fazer tudo bem, sorriu para si mesma. Imaginou-se sob o efeito do pó maravilha e avançou confiante. O desconhecido, que a esperava, levanta-se cortezmente, e dá-lhe passo para se sentar. Ela agradece. E de repente fica sem saber o que dizer e só pensa no saquinho. Ele sorri, afável. "Sabe que é a minha primeira vez."

Ele escreve algo no guardanapo e passa-lho. Ela sabe o que está lá dentro. Sabe que é o ponto onde pode desistir ou não. Recebe o guardanapo, que percorreu o trajecto até si, arrastado por uma mão já algo enrugada. Uma imagem passa-lhe pela mente, sente um arrepio. Abre o guardanapo. Acena com a cabeça.

"Feliz aniversário para mim."

[Guardanapo: 5.000 euros. One night. Everything.]

Lar  

Posted by mf in

No frio estendes a mão
e atrais-me a ti
enquanto os olhares se cruzam,
áscuas candentes
em grito mudo de anseio.

Tudo é lento, tudo é paz
de início de brasido
que pressentes quente
na lareira do meu corpo.

Em minha pele acendalha
tua língua começa a lavrar
acendendo rastilho ardente.

Sobes em fogo vivo,
teus dedos tição em brasa
ateando a acha do meu corpo.

Sentes-me a dureza do lenho,
em pira disposto
à espera da incandescência.

Há fogo em torvelinho
enquanto as bocas se incendeiam
e deslizo abrasado e febril
por teu campo em labaredas.

Rasgo-te em delírio de incêndio
rugindo em cada crepitar,
duas línguas de fogo
faíscam na noite em fúria
e consomem-se em calor de fornalha.

Cadáver Esquisito XI  

Posted by Bruno Fehr in

Aqui ficam mais dois meios textos que se encontram a meio, apenas por uma palavra. Eu escrevi a primeira parte do texto (vermelho tinto) e passei à Ipsis Verbis a palavra Silicone (cinzento). A partir dela, ela fez a segunda parte (verde garrafa).

Sem nexo :)  

Posted by Bruno Fehr in

Gosto de ti porra!

Desde daquele dia em que te vi, esparrameirada no passeio, pois tinhas tropeçado num calhau. Fiquei apanhado do clima por ti. Observei o teu cu enquanto te compunhas e rapidamente te afastavas ainda manca, não sei se do tralho ou se partiste um tacão. Ca ganda cu. Ganda não do tamanho mas da qualidade. Imaginei-me a espancá-lo enquanto que dava umas cabeçadas com o meu Zé Tólas. Se isto não é amor, então não sei o que é!

Dizem-me que não sou romântico, só porque não ofereço ramos de urtigas ou lá o que elas gostam. Claro que sou romântico, acho que é romântico dizer a uma gaja que ela me dá câimbras genitais sempre que passa por mim, que gostava de ter 3 mãos só para lhe segurar os peitos e ver se eles rebentam. Dizem-me “ah e tal, aquilo são mamas de supermercado”. E então? O que interessa se ela comprou as mamas em saldos? Não sou racista não tenho nada contra a

silicone

Mas o que é que este gajo quer que eu escreva a partir desta palavra?! A verdade é que fiz logo uma busca pelo Google e mesmo assim não tive nenhuma epifania ou inspiração, mas descobri o nome do químico inglês que foi pioneiro no estudo dos compostos orgânicos da sílica (ou dióxido de silício) e que inventou a silicone, usada para inúmeros fins que não só os da cirurgia estética ou reconstrutiva.
E já não tinha uma aula de química há muito tempo. E desculpem se me atrasei a escrever este cadáver esquisito. A verdade é que, entusiasmada com a matéria, (e isto de ser-se autodidacta com internet dá-nos demasiada liberdade) dei por mim a ver minerais, imaginem! O quartzo, por exemplo, é o mineral mais abundante da terra, é composto por tetraedros de sílica que formam um prisma. Por outro lado, o espodúmena, (que nome lindo) é mais raro e é a principal fonte do Lítio e este último (vou já acabar, ok?), para além de ser usado nas baterias eléctricas, é considerado como anti-psicótico e serve como tratamento para o transtorno bipolar.

Numa noite como outra noite qualquer  

Posted by I.D.Pena



Numa noite como outra noite qualquer... Numa hora perdida no espaço, duas pessoas encontram-se, duas vidas cruzam-se. O porquê que as rotinas se cruzam interessa mas é algo que só saberemos realmente perto do fim.



Uma densa atmosfera rodeava aquelas duas almas , naquela ponte, e naquele dia.
Joel tinha 32 anos e decidira morrer.
Estava farto de se desiludir, estava farto de lutar e de acreditar , estava farto.
Hoje não só estava farto mas como estava realmente determinado a acabar com a sua própria vida.

Já pensara variadíssimas vezes em como fazer isso da melhor forma e depois concluíra que isso era algo que pouco importava, mas nada tinha planeado a não ser chegar àquela ponte, que parecia estar deserta de pessoas, e só os carros passavam de tempos em tempos.
Os passos pareceram-lhe quase mais leves, e quase que sorriu ao imaginar a tamanha liberdade que o esperava, não sentir o peso da realidade, não sentir dor, não sentir nada, nem o amor nem ódio, nada.

Lentamente, e passo a passo em direcção ao seu final suplicio, memorias de pessoas irrompiam-lhe pela mente.
Todas elas diziam algo, mas como que por magia não se ouvia nada.

Não tinha dito Adeus a ninguém e isso pesava-lhe desconfortavelmente na consciência. Doeu-lhe por dentro e nisto começa a chover.

A chuva encobria-o e poupava-o a possiveis alaridos , pois o objectivo era mesmo o desaparecer.
As gotas pareciam-lhe mornas. A chuva banhou a dor, e ele assim continuou, sentindo-se sujo de vida.

No outro extremo da ponte quando finalmente chegara, reparou que estava uma pessoa com um guarda chuva , mas que se dirigia para o lado oposto ao dele, não o preocupou nem um bocadinho e continuou o seu plano.

A chuva lavava tudo , os carros, as telhas as pessoas, as pedras e o alcatrão formando poças que se tornavam cintilantes devido às luzes que reflectiam.

Joel queria acabar tudo e era naquela noite, desde pequeno que lhe enojava algumas atitudes ditas humanas, aquelas que lhe deram a conhecer o ódio, o nefasto ódio e a cobiça, que depois se desenvolveu para raiva, entendeu finalmente que já não pertencia a este mundo.

Mais uma razão .
Como se precisasse de mais...

Tirou a gabardine ensopada do corpo e atirou-a para a estrada.
Esvaziou os bolsos das calças sentiu-se a perder peso, pegou no telemóvel que miraculosamente ou por acaso, tocava, não viu quem era, e mandou com o máximo de força para o imenso rio que seria agora a sua nova casa.

Limpo, e vazio para ser livre. Não precisou de coragem, não precisou de motivos, não complicou a sua decisão...

- Por amor de Deus, não faça isso !

Gritou uma rapariga visivelmente abalada com toda aquela situação.
O homem aparentemente desesperado e pelo amor à liberdade nem sequer respondeu, nem sequer se virou, continuou estático com toda aquela água a correr-lhe pelo rosto, só se riu da ironia doce que a chuva lhe brindava, esta menina era o ultimo sarcasmo da vida.
E com um esgar de felicidade, mergulhou rumo ao infinito sem dor.
9 de Setembro de dois mil e nove.
Foi numa noite como outra noite qualquer que esta vida se apagou .

Uma vida como outras tantas, os motivos podemos tentar adivinhar, mas essas razões nem sempre são para se encontrar, porque nunca estaremos realmente certos do que as noites encerram por debaixo das diferentes atmosferas que a vida nos brinda. Nem sequer dos desgostos cíclicos que motivam quando por desespero alguém decide por um melhor fim.

Contra o tempo com contratempos  

Posted by LBJ in


Tenho na minha frente um teclado cheio de letras que olho de forma vazia. Uma vez mais o tempo que não consigo organizar, a vida que não consigo organizar levam-me a olhar o teclado e desafiá-lo para uma corrida contra um relógio que teima em não parar. Coloco os dedos sobre as teclas como se houvesse uma força interior que os vai animar e começar a escrever palavras num ecrã que ainda está em branco. A primeira palavra sai sem ter conhecimento da segunda e a terceira já se encaixa na quarta e a quinta dá significado à sexta e a sétima e a oitava e começo a escrever sobre alguém com que me confundo e que olha um relógio que muda a cada segundo, alguém que acordou de uma noite mal dormida ou de uma vida mal passada e que tem que escrever palavras nesta página que abandona o branco, palavras que tem que ser semeadas por ordem para poderem florescer em significado, palavras que tem que ser orientadas para serem lidas no encaminhar de sentimentos na direcção de uma ideia, palavras que escolho com preconceitos e sem preceitos.

Hoje sinto-me apenas um semeador de palavras com um compromisso de colheita e não sei se isso me agrada. Apetecia-me contar uma história que ainda não foi contada mas que não consigo encontrar no sufoco do relógio. Apetecia-me falar de diferentes sentires ou coisas novas mas confronto cada ideia com apenas outro mas. Não gosto do compromisso do relógio mas sei que a vida é mesmo assim, há sempre um relógio e sei que este é generoso e que me deu tempo para ter tempo de não ser agora apenas um semeador de palavras.

Abandono tudo e começo a escrever sobre alguém que não quero ser eu e que tem a ambição de ser escritor e que de repente se viu confrontado com um prazo para escrever algo e que não sabe o quê mas sabe porquê. Imagino-me como personagem desta história e pergunto-me a mim mesmo se me agradaria ler uma história em que eu fosse personagem e pergunto-me a mim mesmo se um escritor consegue criar histórias em que não seja ele próprio o personagem, mesmo que representado sobre outras formas e géneros e idades e envolvido em cenários que nunca viu mas que certamente imaginou. De repente cresce-me um sentimento de abandono porque eu realmente não me agradaria ler uma história em que eu fosse o personagem e se todos os personagens que consiga criar são apenas outras formas ou outros géneros e idades de mim mesmo então estou a perder o meu tempo ou mais grave estou desesperado com o passar de um tempo sem sentido.

Desisto e escrevo sobre flores e depois sobre o vento que não sopra porque está calor e sobre uma caixa de cartão sem nada escrito que foi deixada na porta de um prédio e que constitui um mistério para quem passa e a olha e se sente tentado a abri-la e escrevo tudo isto para tentar fugir de um personagem que não quero ser porque não percebo muito de flores e sei que mesmo quando está calor o vento ainda sopra e que na caixa não há nada porque fui eu que lá a deixei ou teria sido um personagem que imaginei que lá a deixou sem qualquer intenção de que constituísse um mistério para quem passasse e porque mesmo quem passasse na minha história seria um personagem com pouca relevância ou muito secundário mas ainda uma variante de mim mesmo e começo a perder-me no texto que escrevo e a achar que não farei sentido para quem o ler mas o relógio não parou e este personagem que imaginei como escritor ainda tem um compromisso de escrever um texto e resiste a apagar tudo e continua a escrever sobre rodas que rodam sobre rodas e de que quando nos olhamos num espelho o que vemos é apenas um capricho de luz que se reflecte e que acreditamos ser a nossa imagem e se calhar somos também nós personagens de uma história e eu sinto sempre uma enorme atracção para espreitar a ultima página ou a ultima palavra e que uma vez mais não deixa de ser o fim.