Tenho pressa de te ver. Subo as escadas que me levam a tua casa, de dois em dois degraus. Já perto da tua porta sinto os meus movimentos presos, como se estivesse em câmara lenta. Passo a passo a muito custo. Movimentos pesados, lentos, dolorosos.
Já perto da tua porta, reparo que ela está aberta. A tua casa em chamas, tu em chamas, mas pareces dançar.
Quero gritar mas a voz falha-me, quero correr para ti e não me consigo mexer. Danças ao som da nossa musica. Envolta em chamas gritas,
“por ti, tudo por ti”.
Acordo encharcado em suor, mais uma vez e uma vez demais sonhei contigo. Cada vez entendo menos estes sonhos, por que motivo ardes nos meus sonhos, e por que motivo dizes sempre a mesma frase?
Ainda deitado na cama busco um motivo para me levantar, não sei se é dia, não sei se é noite e isso pouco importa. Assim que me levanto dirijo-me ao frigorífico, só para reparar que está vazio, não tenho nem uma única garrafa de vodka para me ajudar.
Olhando em volta, reparo que em cima da mesa estão os vestígios de uma festa pessoal, vestígios dos meus abusos numa desesperada tentativa de fugir da realidade, de chegar àquele ponto em que tudo é belo, pois eu não percebo nada. Um estado de anestesia cerebral que gosto de sentir e gostaria de lá morar, para sempre. Aquele coma voluntário causado por drogas e álcool que me permite dormir.
Sento-me na secretária e fico a observar as folhas em branco, nem uma palavra me ocorre. Nada. Levanto-me e vou à minha bíblia. Na verdade não é uma bíblia mas sim um livro oco, onde lá dentro está a minha melhor amiga, aquela que me tem mantido vivo todo este tempo. A cocaína. Após duas linhas, estou pronto e começo a escrever:
“Sou uma réstia da pessoa que fui, uma sombra de quem sonhei ser, estive perto de ter tudo e o pouco acabei por perder”Imediatamente amachuco a folha atirando-a para o chão, e tento novamente:
“Sou um sentimento mal descrito, uma lágrima lavada. Sou uma dor sem medida, uma voz amarrada. Sou um pensamento confuso, podendo ser tudo. Sou nada!”Mais uma folha destruída. Mais uma folha no chão. Mais uma de perto de uma resma de páginas amachucadas, com palavras desorganizadas.
Desde que escrevi o meu livro, que nada escrevo. Assim que ele foi lançado eu já sabia que nunca o iria superar. As pessoas ao lerem perguntavam-me se eu não tinha medo de não voltar a escrever nada que se comparasse. Claro que tinha, e tenho porque sei que nunca mais irei escrever nada, nem bom, nem mau. Perdi as palavras, nada do que escrevo faz sentido. O meu livro matou-me um pouco a cada frase, a cada palavra. Aquele livro foi o meu exorcismo de sentimentos que acabou por me deixar vazio. Meses depois quando foi adaptado para o cinema, o filme foi como que o anuncio do meu fim. Foi como que uma exposição publica de tudo o que sinto, uma partilha onde dei tudo e fiquei sem nada.
Frases como
“o jovem escritor”,
“a jovem promessa”, na verdade esse jovem escritor envelheceu 100 anos assim que o primeiro livro foi vendido, a jovem promessa condenou-se nesse mesmo dia.
Sim estou rico, livro e filme deixaram-me rico, mas daria tudo, tudo para voltar atrás no tempo e colocar aquele manuscrito na gaveta. Daria tudo para voltar a ser mais uma vez um pobre escritor sem rumo. Viveria uma vida normal, e tu ainda estarias a meu lado.
Ligo o meu PC para saber que dia é hoje. Segunda-feira 6 de Julho de 2009 e são 13:22 horas.. Mais uma data desinteressante. Não sei o que esperava sentir, ao saber que dia é hoje. Acho que esperava unicamente sentir.
Ando pela casa, observando a destruição de uma uma vida sem sentido. Em cima da mesa de café algo desperta a minha atenção, um apelativo pó castanho e meia garrafa de Moskavskaia. Ambas olham para mim, como que dizendo-me
“olá”. Bebo o vodka num só fôlego, volto à minha Bíblia para ir buscar um pouco da minha amiga. Uma colher, um pouco de limão, um isqueiro e ambas as drogas e tinha dentro da seringa uma pequena bomba para me fazer sentir bem. Injecto-a não nos braços, pois a minha exposição publica não me permite andar por aí todo marcado. Injecto-me numa veia do pé.
Saio de casa em direcção à editora, vou lá mais uma vez para lhes dizer que o meu próximo livro está mais uma vez atrasado, tão atrasado que não tem ainda uma única linha.
Pelo caminho lembro-me de ti. Lembro-me daquela festa de lançamento do filme em Nice. A mesma que me disseste não poder ir, quando na verdade me querias fazer uma surpresa. Após uma noite de abusos de álcool e drogas, acabei na cama com outra mulher e quando dei por mim, estavas de pé com uma mala de viagem na mão, à porta do meu quarto de hotel, tentando perceber o que se estava a passar. Eu? Eu estava nas nuvens, numa espécie de mundo virtual onde via tudo como que um sonho, e só mais tarde percebi que foi real. Percebi que estiveste ali, que me viste com outra e que te magoei.
Se o meu livro deu inicio à minha destruição, o filme a tornou publica. Perder-te foi a gota de água. Tu eras o único motivo pelo qual eu ainda vivia, mesmo com todas as minhas tentativas de suicídio com explosivos cocktails de drogas. Vivia por ti e não sabia. Nunca dei valor a nada, nem a ti até que te perdi.
Quando a tournée de promoção terminou, voltei para casa. Sentia-me mal, usado, prostituído por andar a publicitar algo que só me fez mal. Por me sentir preso a algo do qual queria fugir, por ser identificado na rua e abordado, quando a cada vez que me diziam
“adorei o teu livro”, me apetecia responder
“adoraria ter morrido um dia antes de o escrever”.Já em casa pego na minha Glock com uma só bala, não preciso de mais, coloco o cano na boca e busco uma razão para não o fazer. Tu. Quero ver-te.
Podes gritar, podes tratar-me mal mas eu quero ver-te. Pego no carro e vou até tua casa. Cá em baixo ligo-te do meu telemóvel e atende-me o atendedor de chamadas, digo unicamente que vou a caminho e que te preciso ver. Ao chegar à tua porta toco à campainha e não me atendes. Pego na minha chave, a chave do teu mundo, que me tinhas confiado, e entro. De onde estou consigo ver a tua televisão no pause, não consigo evitar reparar que é uma imagem do meu filme, um pause na cena que tu sabias que me foi mais difícil escrever por ter de reviver tudo aquilo.
Aproximo-me do sofá e dou por mim em pé numa poça de sangue seco. Em pânico tento em vão acordar-te, falo contigo, beijo-te. Estás gelada, sem vida. Perdi-te. Nunca aceitei que tivesses partido.
Nesse dia perdi tudo, até a vontade de morrer. A tua morte foi por culpa minha, fugiste de mim. Fugiste para o único local onde sabias que seria impossível para mim, encontrar-te. Nem morrendo. Nesse dia condenei-me à vida, ao sofrimento e à intensificação da minha auto-destruição. Compreendi que o meu castigo seria viver. Viver sabendo-me responsável pela tua morte. Condenei-me a lembrar-te.
A caminho da editora decido acabar com tudo. Irei dizer-lhes que fui autor de obra única e que não vou, nem quero escrever mais nada, mesmo que isso signifique ter de os indemnizar com todo o dinheiro imundo que nunca quis ganhar.
Faço uma curta paragem numa estação de serviço. Preparo-me para encher o depósito do carro, quando tudo me bate como que um furacão. Perdi-te. Morreste e nunca mais te irei ver. Nos meus sonhos atribuis-me as culpas. Sem ti nada faz sentido.
Sinto-me a perder as forças nas pernas, caio de joelhos no cimento, a agulheta salta fora do depósito espalhando gasolina por todo o lado. Sento-me, encostado ao pneu do meu carro. Puxo por um cigarro e acendo-o com o meu Zippo.
Vejo o empregado da estação de serviço a sair do seu posto, vem na minha direção, ao ver-me de cigarro aceso e zippo na mão, ele foge. Pela primeira vez em muitos anos, uma lágrima acaricia-me a face. Deixo cair o isqueiro.
As chamas envolvem-me como se o fogo me amasse e entramos numa dança frenética. A dor da tua perda é tão grande que já não sinto dor alguma. O fogo ama-me, e grito:
“Por ti, tudo por ti”.