Cadáver Esquisito IX  

Posted by Bruno Fehr in

Mais dois meios textos da série "Cadáver Esquisito". Eu escrevi a primeira, passando apenas a última palavra do meu texto à Ipsis Verbis a qual ela usou para começar a escrever a sua parte.

(a palavra passada entre nós é "Banco" e aparecerá no texto apenas uma vez)


Ipsis Verbis - vermelho vinho
Bruno Fehr - verde garrafa

Banco  

Posted by Bruno Fehr in

No momento em que a vi apeteceu-me tocar-lhe, abraça-la como se ela fosse chorar. Dizer-lhe "está tudo bem e vai continuar tudo bem", mas um estranho não pode fazer isso. Nos primeiros segundos senti que a conhecia, via-a como especial. Os meus pensamentos saltitavam entre o sonho e a realidade. Sonhando pensava "podes ser tu", para de seguida pensar "podes ser tu quem me irá magoar". Porque é assim mesmo, o nosso lado sonhador sonha, ilude-se enquanto o outro nos diz "vais-te lixar". Qual ouvimos? O sonhador, claro.

É este o poder que uma mulher exerce sobre um homem, o de conseguir deixar o mais seguro dos homens, o mais confiante dos homens a sonhar como um adolescente perdido e confuso. Perdido em pensamentos banais, planos banais de uma vida activamente banal.
Os nossos olhares tocaram-se. Tocaram-se distraidamente. Não a esperava ver, ela não me esperava ver mas o olhar não foi desviado. Olhei-a bem, olhei bem fundo nos seus olhos enormes e muito abertos. Vi muito mais do que queria ver, vi beleza, vi carinho, vi curiosidade e vi dor, muita dor e vi algo de perturbador. Sorri para ti com segurança insegura de quem viu o seu coração invadido por um simples olhar. De quem viu os seu sentimentos remexidos até aqui escondidos num local mais escuro e protegido que a caixa forte de um

banco


... dinheiro... tempo... e agora já não consigo pensar noutra coisa senão em férias. Férias de tudo! Férias permanentes em praias desertas, com água cristalina e areal a perder de vista. Saladas e sumos naturais. Carradas de protector solar e depois mais carradas de hidratantes pós-sol... ahhh, lembro-me das longas tardes de verão que se estendiam até às 10h da noite. As massagens em spas de fim-de-semana. Os mojitos, caipirinhas, águas de coco e sumos naturais. E o de maçã e lima, fresco (e não com gelo) era divinal. Bebia sempre dois de seguida. Começava a arrefecer-nos de baixo para cima. Primeiro na zona do estômago, depois todo o peito e garganta, e segundos depois, já sentíamos a testa mais fresca (sorrio). Vem-me à memória, outras memórias... Lembro-me, por exemplo, do pequeno banco branco de madeira, onde me sentava ao sol, na casa de férias dos meus avós, enquanto construía pequenas catedrais com areia molhada. Aquelas manhãs quentes em que era necessário molhar o banco antes que me pudesse sentar nele. E a piscina era apenas a segunda distracção desses dias. Anos mais tarde, aquele beijo dado no banco do jardim, em frente à escola secundária, no último dia de aulas antes das férias grandes.. O calor nesse Junho estava insuportável. E aquela sombra, mesmo junto à fonte que, com a ajuda de algum vento nos trazia gotas de água para nos molhar, pediu aquele momento. Seria o primeiro beijo a fazer estremecer-me por dentro. E foi lindo.

Entrega  

Posted by mf in

Teus dedos
De doçura dolorosa
Sobem por meu corpo acima
Desvendando cada trilho
Franqueando cada trincheira

Sinto-te o desejo, a audácia, a procura
Em minhas pernas
Buscando garupa firme
Por galgar

Tua boca
Guiada por bússola invisível
Mergulha em seu pólo magnético
Torturando meu mundo
Invadindo minha coutada

Sinto-te o repto, o duelo, a mestria
Nas curvas esconsas
Desvendando segredos
Urdindo a capitulação

Tua pele
De suavidade suada
Une-se ardente à minha
Despertando o fogo
Entorpecendo os sentidos

Sinto-te a investida, o furor, a dureza
Em meu ventre
Acirrando o desejo
Por extinguir

Teus dentes
Incitados ao banquete
Devoram a maciez salgada
Provocando a súplica
Saciando a paixão

Sinto-te o toque, a ânsia, a firmeza
Na curva suave do peito
Ondulando ao sabor
Da tua vontade

Tua língua
Desejada em murmúrio
Marca minhas veias latejantes
Delimitando território
Assenhoreando-se de mim

Sinto-te o domínio, o ardor, o prazer
Na cerviz inclinada
Fervilhando ao toque
Da tua dança

Tuas mãos
De vontade maciça
Estiram meus cabelos
Expondo minha face nua
Descobrindo meu acordar

Sinto-te o deslumbre, a reverência, o espanto
Nos corpos em doce aconchego
Deixando nascer em silêncio
O mais sentido abraço

Teus olhos
De ternura infinita
Contemplam meu mundo
Conquistando meu sossego
Devastando meu coração

Sinto-te a paz, o carinho, o encanto
Nas mãos que se entrelaçam
Deixando sentir o prenúncio
De amor imenso e devasso.

O Privilégio do Disparate – Parte incontável de uma série fora de série noutro lado qualquer que não é um lado qualquer  

Posted by LBJ in



Normalmente quando escrevo estas coisas, o mais difícil é a primeira palavra e o curioso é que desta vez escolhi a palavra normalmente, o que deveria ser um bom sinal, mas como pelo contrário nada do que se me tem assomado à cabeça ultimamente roça a normalidade, criei na partida para esta dissertação um reflexo de contrariedade e quando digo contrariedade não quero dizer que este privilégio me vai causar um sentimento de oposição a um estado de conforto, mas sim que por um desígnio qualquer que podemos considerar divino ou de karma ou mesmo instintivo, me levou a pegar na coisa dentro da normalidade numa fase onde tudo me parece anormal.

Como podemos nós estabelecer um padrão de normalidade para os nossos comportamentos, decisões, interacções e formas de andarmos pela vida? De manhã todas as pessoas acordam, porque dormir é uma necessidade normal, desperdício de tempo dirão alguns, tão bom dirão outros, mas o que importa é que o ser humano, à semelhança de outros bichos, precisa de dormir para funcionar normalmente e por isso assumo que num dia normal, primeiro acordamos, depois podemos ser higiénicos e meter água para cima do corpo e lavar os dentes ou viciados e fumar um cigarro ou coisas mais divertidas ou atléticos e brincar com uns pesos ou esfomeados e comer o que se encontrar no frigorifico ou modernos e espreitar a rede, os mails, os blogs e aquele site porno que durante a noite se carrega de filmes de gajas mamalhudas, voluntariosas e que conseguem fazer coisas que não pensávamos ser anatomicamente possível e está fora de causa que num dia normal se comece com sexo, porque isso só mesmo nos filmes. Eu normalmente no inicio de um dia normal faço isso tudo, sem uma ordem normal e é normal que gaste uma horita ou mais o que me leva a que normalmente saia de casa atrasado para qualquer coisa e já cheio de stress, mas se o stress é normal será que o poderemos chamar de stress? Mas pronto, como não sou dotado de conhecimentos de terapia mental ou capaz de identificar comportamentos desviados, não vou mais falar de stress e depois de sair de casa, normalmente existe à nossa espera um meio de transporte que nos leva para o trabalho.

No meu caso é um automóvel, que à semelhança de muitos como eu é um complemento importante da minha virilidade, eu dentro da viatura sou o mestre daquele espermatozóide com rodas e compito como os outros espermatozóides no objectivo de chegar primeiro ao meu objectivo o que não deixa de ser divertido porque o meu espermatozóide é preto e faz-me lembrar aquele filme velhinho do meu guru Woody Allen, naquela cena em que o espermatozóide preto na fila para o lançamento se perguntava o que é que estava ali a fazer e reconheço que não será normal estar a falar de espermatozóides numa dissertação sobre normalidade, mas deu-me para isto.

Chegados ao trabalho, será normal a peregrinação à maquina do café, antes ou depois de ligar o portátil, assumindo que é normal que hoje em dia todos nós temos tarefas de contribuição para a sociedade ou modos de ganhar a vida, que impliquem a interacção com computadores. Depois é ver os mails e agir em conformidade e aturar os desaforos dos superiores hierárquicos que normalmente são umas bestas, enquanto espreitamos aqui e ali os sites habituais, sem sequer nos apercebermos que é normal que a malta da gestão da rede saiba tudo o que fazemos e que um dia nos lixamos com a brincadeira se a administração decide começar a meter o bedelho nas nossas indiscrições, porque um local de trabalho não é sitio para engates ou brincadeiras ou de conjecturas ou associação a movimentos de oposição à normalidade mundial.

Depois normalmente se chega à hora de almoçar e normalmente existe aquele agrupar de gentes que se identificam uns com os outros e comem juntos, será um processo hormonal ou socialmente dependente mas as pessoas assumem comportamentos de grupos em manada quando ruminam juntos e depois os homens falam de bola e de gajas e as mulheres não faço puto de ideia, porque não quero ser acusado de preconceito sexual, mas imagino que falem de coisas importantes, porque as mulheres são muito mais bem adaptadas que nós para funcionar em grupo.

Depois vem o período da tarde com o cafezinho a meio e em que acima de tudo nos apercebemos que o tempo é uma coisa que estica e que se encolhe e lá para a tardinha saímos do emprego e as pessoas normais podem ir jantar com os amigos, beber um copo, frequentar cinemas e teatros e discotecas ou passear nos centros comerciais ou namorar ou praticar sexo ou voltar para casa e estar com a família e os outros que definitivamente não são normais entretêm-se a escrever em blogs.


Nota: Este texto se não fosse colocado aqui faria parte de uma série e seria o nono e para quem não conhece estes textos, eles desobedecem a qualquer regra, são escritos de ponta a ponta sem paragens para pensar, respirar , cafezinho, sem intervalo para fazer chichi ou mesmo qualquer correcção, escrita crua para quem acha que o açúcar ou tempero adultera o sabor natural dos alimentos.

Acordar  

Posted by Jane Doe in

"Acordo num campo de trigo. Não me lembro de ter ali adormecido, pensava que tinha adormecido na minha cama, no meio de uma grande cidade, mas no entanto acordo um campo de trigo no meio de lado nenhum. Aquilo é, de facto, diferente. Levanto-me estranhando a paisagem dourada, o chão impressionantemente macio. E tenho fome. Após um longo suspiro estico as pernas e decido começar a andar. Tenho fome, e não sei o que estou ali a fazer, nem como ali fui parar.

Lembro-me de que tenho de ir trabalhar, que deveria ter em conta as horas, mas estar ali sabe-me bem, e essa realidade parece-me longe. Por falar em longe, estreito a vista, e acabo por perceber uma casa. Comida, penso. E acelero o passo.

O campo de trigo dá lugar a um campo de girassóis. E o campo de girassóis guarda uma casa que me espera. Olho o céu. Um laranja dourado de amanhecer. Sorrio. E começo a correr para encurtar a distância. "Terei morrido e chegado ao céu?" Não importa. Sorrio à ideia de tomar o pequeno almoço naquele lugar. E ao fundo vejo aquilo que me parece ser o animal dos meus sonhos. Uma pantera negra à minha espera. Aquele ar faz-me bem, aquelas flores a adorar o sol fazem-me por momentos feliz. E aquela pantera negra não me deixa esquecer o que eu realmente sou. Tudo parece perfeito, num equilíbrio que eu jamais pensei existir, ou mesmo desejar. Porque nunca desejei o equilíbrio, mas agora não faz mal. A pantera está ali. É eu, negra, em toda a minha essência. Extasiada pela visão corro para a casa, que me parece cada vez mais irreal. Amarela com tons de verde, como se fosse uma extensão do campo de girassóis. A pantera aproxima-se de mim, um caminhar suave e forte ao mesmo tempo, o negro a reluzir ao sol, os seus olhos profundamente verdes. Sem medo toco-lhe, sem medo, acaricio-a e o animal deixa-se acariciar. Por pouco tempo. Nunca é preciso ser demais. "E há quem pense que quanto mais abraça mais gosta. Detesto abraços...".

A pantera não vai muito longe. Está ligada a mim. Sempre a mim. E entro na casa e vejo o tão aguardado pequeno almoço. Pão com manteiga, pão com doce, pão com marmelada, é só escolher. Leite, sumo de laranja, chá, café, é só escolher. Morangos, mangas, uvas, bananas, cerejas, é só escolher. E sento-me. E escolho. A cereja."

Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi Pi!

Merda do despertador!

Héstia  

Posted by Bruno Fehr in

Tenho pressa de te ver. Subo as escadas que me levam a tua casa, de dois em dois degraus. Já perto da tua porta sinto os meus movimentos presos, como se estivesse em câmara lenta. Passo a passo a muito custo. Movimentos pesados, lentos, dolorosos.
Já perto da tua porta, reparo que ela está aberta. A tua casa em chamas, tu em chamas, mas pareces dançar.
Quero gritar mas a voz falha-me, quero correr para ti e não me consigo mexer. Danças ao som da nossa musica. Envolta em chamas gritas, “por ti, tudo por ti”.

Acordo encharcado em suor, mais uma vez e uma vez demais sonhei contigo. Cada vez entendo menos estes sonhos, por que motivo ardes nos meus sonhos, e por que motivo dizes sempre a mesma frase?
Ainda deitado na cama busco um motivo para me levantar, não sei se é dia, não sei se é noite e isso pouco importa. Assim que me levanto dirijo-me ao frigorífico, só para reparar que está vazio, não tenho nem uma única garrafa de vodka para me ajudar.
Olhando em volta, reparo que em cima da mesa estão os vestígios de uma festa pessoal, vestígios dos meus abusos numa desesperada tentativa de fugir da realidade, de chegar àquele ponto em que tudo é belo, pois eu não percebo nada. Um estado de anestesia cerebral que gosto de sentir e gostaria de lá morar, para sempre. Aquele coma voluntário causado por drogas e álcool que me permite dormir.

Sento-me na secretária e fico a observar as folhas em branco, nem uma palavra me ocorre. Nada. Levanto-me e vou à minha bíblia. Na verdade não é uma bíblia mas sim um livro oco, onde lá dentro está a minha melhor amiga, aquela que me tem mantido vivo todo este tempo. A cocaína. Após duas linhas, estou pronto e começo a escrever:
“Sou uma réstia da pessoa que fui, uma sombra de quem sonhei ser, estive perto de ter tudo e o pouco acabei por perder”
Imediatamente amachuco a folha atirando-a para o chão, e tento novamente:
“Sou um sentimento mal descrito, uma lágrima lavada. Sou uma dor sem medida, uma voz amarrada. Sou um pensamento confuso, podendo ser tudo. Sou nada!”
Mais uma folha destruída. Mais uma folha no chão. Mais uma de perto de uma resma de páginas amachucadas, com palavras desorganizadas.

Desde que escrevi o meu livro, que nada escrevo. Assim que ele foi lançado eu já sabia que nunca o iria superar. As pessoas ao lerem perguntavam-me se eu não tinha medo de não voltar a escrever nada que se comparasse. Claro que tinha, e tenho porque sei que nunca mais irei escrever nada, nem bom, nem mau. Perdi as palavras, nada do que escrevo faz sentido. O meu livro matou-me um pouco a cada frase, a cada palavra. Aquele livro foi o meu exorcismo de sentimentos que acabou por me deixar vazio. Meses depois quando foi adaptado para o cinema, o filme foi como que o anuncio do meu fim. Foi como que uma exposição publica de tudo o que sinto, uma partilha onde dei tudo e fiquei sem nada.

Frases como “o jovem escritor”, “a jovem promessa”, na verdade esse jovem escritor envelheceu 100 anos assim que o primeiro livro foi vendido, a jovem promessa condenou-se nesse mesmo dia.
Sim estou rico, livro e filme deixaram-me rico, mas daria tudo, tudo para voltar atrás no tempo e colocar aquele manuscrito na gaveta. Daria tudo para voltar a ser mais uma vez um pobre escritor sem rumo. Viveria uma vida normal, e tu ainda estarias a meu lado.

Ligo o meu PC para saber que dia é hoje. Segunda-feira 6 de Julho de 2009 e são 13:22 horas.. Mais uma data desinteressante. Não sei o que esperava sentir, ao saber que dia é hoje. Acho que esperava unicamente sentir.

Ando pela casa, observando a destruição de uma uma vida sem sentido. Em cima da mesa de café algo desperta a minha atenção, um apelativo pó castanho e meia garrafa de Moskavskaia. Ambas olham para mim, como que dizendo-me “olá”. Bebo o vodka num só fôlego, volto à minha Bíblia para ir buscar um pouco da minha amiga. Uma colher, um pouco de limão, um isqueiro e ambas as drogas e tinha dentro da seringa uma pequena bomba para me fazer sentir bem. Injecto-a não nos braços, pois a minha exposição publica não me permite andar por aí todo marcado. Injecto-me numa veia do pé.

Saio de casa em direcção à editora, vou lá mais uma vez para lhes dizer que o meu próximo livro está mais uma vez atrasado, tão atrasado que não tem ainda uma única linha.
Pelo caminho lembro-me de ti. Lembro-me daquela festa de lançamento do filme em Nice. A mesma que me disseste não poder ir, quando na verdade me querias fazer uma surpresa. Após uma noite de abusos de álcool e drogas, acabei na cama com outra mulher e quando dei por mim, estavas de pé com uma mala de viagem na mão, à porta do meu quarto de hotel, tentando perceber o que se estava a passar. Eu? Eu estava nas nuvens, numa espécie de mundo virtual onde via tudo como que um sonho, e só mais tarde percebi que foi real. Percebi que estiveste ali, que me viste com outra e que te magoei.

Se o meu livro deu inicio à minha destruição, o filme a tornou publica. Perder-te foi a gota de água. Tu eras o único motivo pelo qual eu ainda vivia, mesmo com todas as minhas tentativas de suicídio com explosivos cocktails de drogas. Vivia por ti e não sabia. Nunca dei valor a nada, nem a ti até que te perdi.
Quando a tournée de promoção terminou, voltei para casa. Sentia-me mal, usado, prostituído por andar a publicitar algo que só me fez mal. Por me sentir preso a algo do qual queria fugir, por ser identificado na rua e abordado, quando a cada vez que me diziam “adorei o teu livro”, me apetecia responder “adoraria ter morrido um dia antes de o escrever”.

Já em casa pego na minha Glock com uma só bala, não preciso de mais, coloco o cano na boca e busco uma razão para não o fazer. Tu. Quero ver-te.

Podes gritar, podes tratar-me mal mas eu quero ver-te. Pego no carro e vou até tua casa. Cá em baixo ligo-te do meu telemóvel e atende-me o atendedor de chamadas, digo unicamente que vou a caminho e que te preciso ver. Ao chegar à tua porta toco à campainha e não me atendes. Pego na minha chave, a chave do teu mundo, que me tinhas confiado, e entro. De onde estou consigo ver a tua televisão no pause, não consigo evitar reparar que é uma imagem do meu filme, um pause na cena que tu sabias que me foi mais difícil escrever por ter de reviver tudo aquilo.
Aproximo-me do sofá e dou por mim em pé numa poça de sangue seco. Em pânico tento em vão acordar-te, falo contigo, beijo-te. Estás gelada, sem vida. Perdi-te. Nunca aceitei que tivesses partido.

Nesse dia perdi tudo, até a vontade de morrer. A tua morte foi por culpa minha, fugiste de mim. Fugiste para o único local onde sabias que seria impossível para mim, encontrar-te. Nem morrendo. Nesse dia condenei-me à vida, ao sofrimento e à intensificação da minha auto-destruição. Compreendi que o meu castigo seria viver. Viver sabendo-me responsável pela tua morte. Condenei-me a lembrar-te.

A caminho da editora decido acabar com tudo. Irei dizer-lhes que fui autor de obra única e que não vou, nem quero escrever mais nada, mesmo que isso signifique ter de os indemnizar com todo o dinheiro imundo que nunca quis ganhar.

Faço uma curta paragem numa estação de serviço. Preparo-me para encher o depósito do carro, quando tudo me bate como que um furacão. Perdi-te. Morreste e nunca mais te irei ver. Nos meus sonhos atribuis-me as culpas. Sem ti nada faz sentido.

Sinto-me a perder as forças nas pernas, caio de joelhos no cimento, a agulheta salta fora do depósito espalhando gasolina por todo o lado. Sento-me, encostado ao pneu do meu carro. Puxo por um cigarro e acendo-o com o meu Zippo.
Vejo o empregado da estação de serviço a sair do seu posto, vem na minha direção, ao ver-me de cigarro aceso e zippo na mão, ele foge. Pela primeira vez em muitos anos, uma lágrima acaricia-me a face. Deixo cair o isqueiro.
As chamas envolvem-me como se o fogo me amasse e entramos numa dança frenética. A dor da tua perda é tão grande que já não sinto dor alguma. O fogo ama-me, e grito: “Por ti, tudo por ti”.