Era Natal e sentia-se, uma vez mais, o contraste.
As ruas iluminadas, os sorrisos nas pessoas que passeavam, abraçadas, carregando sacos de embrulho nos braços generosos, a música suave que ecoava no ar.
E ela, sentada na casa de papelão que defendia com unhas e dentes da decrepidez que constantemente ameaçava, a única coisa que podia chamar sua, para além dos trajes gastos que lhe cobriam a nudez do corpo... mas não espantavam o frio do Inverno.
A alma, essa, continuava em chamas. Não se reconhecia como aquela jovem mulher (que parecia agora carregar cem anos em cima) andrajosa, continuava a caminhar de cabeça erguida, orgulhosa, ignorando os olhares de surpresa e desprezo que brindavam a sua aparente desobediência ao rígido código social que impunha uma atitude submissa aos menos afortunados pelo destino.
Sobrevivia a vender fósforos num Mundo em que os isqueiros eram reis. Os parcos € que acumulava gastava-os enganando o estômago, mas ficava feliz com a ideia de que os seus fósforos aqueciam a vida das pessoas. Por isso, de cada vez que vendia uma caixa, oferecia grátis um sorriso e uma palavra amável. E reparava que lhe sorriam de volta, confusos. Talvez por pensarem que uma pobre desventurada como ela nada tinha para sorrir... Ela sabia mais do que isso. Sabia que aquele era apenas um percalço no destino, que a guardava para um acto maior. Por enquanto, iluminava e aquecia, com os seus fósforos.
O dia 25 de Dezembro amanheceu cinzento e branco, a neve espalhando o seu manto por toda a cidade. Durante todo o dia caíram pedaços gelados de chuva do céu, que se amontoaram num tapete branco que tudo cobriu.
Já bem entrada a noite, o inesperado aconteceu. Reuniam-se os familiares em volta das fartas mesas para o final da ceia e as luzes de toda a cidade começaram a tremeluzir, cada vez mais rápido, até cessar por completo. Rapidamente toda a cidade estava às escuras, desamparada como alguém que de súbito deixa de ver.
A rainha das mendigas, habituada que estava à escuridão da noite, preparou uma pequena fogueira para se aquecer e iluminar. Depressa estava rodeada dos seus amigos de destino, que procuravam dois dedos de conversa e espantar o gelo.
As pessoas que vinham à porta das suas casas, procurando explicação para aquele fenómeno, apenas distinguiam aquela fogueira, como um distinto clarão que rasgava a noite e parecia indicar um porto seguro. Atraídas pela luz, reuniram os seus pertences, uma trouxa de comida e bebida e dirigiram-se para lá.
Minuto após minuto, a multidão que rodeava a mendiga começou a engrossar, e a fogueira teve de ser alargada. Imbuídas de um qualquer espírito desconhecido, as pessoas puxavam de bancos, colocavam mantas no chão gelado e conversavam com o vizinho do lado, que nunca tinham visto mais gordo. Partilhavam os seus haveres naturalmente, como se sempre o houvessem feito.
Nessa noite ninguém na cidade passou fome nem frio. Os sorrisos multiplicaram-se, os rostos farruscos iluminaram-se na esperança.
E Deus, no céu, gargalhou.
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on quarta-feira, dezembro 15
at quarta-feira, dezembro 15, 2010
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