Abro os olhos pestanejando com a luz amorosa do Sol a refastelar-se já pelo quarto adentro, descobrindo-me os segredos enfiados em gavetas.
Enquanto sacudo de mim a réstia do sonho, abraçando o novo dia que se descobre diante de mim e aplaudindo-o com a alma aberta, entranha-se-me a ideia de que aquele será um dia verdadeiramente especial no meu caminho. Alegram-se-me os olhos e pula-me o coração no peito em antecipação da noite mágica, o familiar medo apertando-me o pescoço. Mas aprendi que o medo é apenas a manifestação do que nos é querido. E este passo, sem dúvida, será a oficialização do meu destino sagrado.
Aquele para onde os meus passos me conduziram, primeiro a menina tímida e diferente, com o vento do Norte a soprar-lhe ainda em sussurro distante no ventre, depois a jovem em busca de se encontrar na sabedoria ancestral, apalpando o caminho apenas com a candeia daquilo que a alma reconhecia como seu, e por fim a mulher que hoje contemplo ao espelho, olhos dourados de esperança e amor.
De pequena mendiga de amor a sacerdotisa da fecundidade e da fé.
De semente fincada na terra a flor vibrante de cor exposta aos elementos. Que tanto amo e protejo – Ar, Terra, Água e Fogo, cruzando-se nas minhas veias de maga, fundindo-se no quinto, que deles depende: o Homem.
E seria na noite indicada nas cartas da Vida da minha madrinha, noite em que a Lua se enche de prata no céu, gorda de orgulho e prenha de luz, que ela me nomearia sua sucessora nos caminhos de Maga, a nova Sacerdotisa do Povo.
Enquanto sonho acordada com a cerimónia que Rayna, minha madrinha, me havia descrito, preparo tudo o que precisaremos para a noite: o vinho quente com especiarias e ervas, receita (diz-se) que descende da primeira Sacerdotisa, Lydia, os pães de mel para forrar o estômago, lenha para a fogueira, a mistura de cinza, mirra e incenso para desenhar o pentagrama na terra, os tambores para animar aquilo que se pretende ser uma festa, um júbilo.
O meu vestido, sonhado por mim em noite de Lua minguante, precisamente 21 dias após o final da minha aprendizagem, está pendurado no roupeiro do meu quarto. Olho-o com orgulho, pois é o traje mais belo que alguma vez vi: veludo em tom lilás, bordado com desenhos de estrelas, luas, sóis e animais inventados, debruado a fios de prata como manda a tradição. Ruborizo-me de gozo só de pensar em envergá-lo.
Finalmente tudo está pronto e, como se adivinhasse o momento certo para aparecer, Rayna chega para me ajudar a vestir e me purificar a mente, o corpo, coração e alma, preparando-me para receber a bênção mais importante do meu Povo.
Seguimos para a floresta, para o local de culto, guiadas pela luz cúmplice da Lua e a magia que se sente na pele, a todo o tempo.
As pedras do altar recortam-se no céu negro e se não conhecesse este lugar como a palma da minha mão assustar-me-ia com a força que nele habita. Força de séculos de magia que aqui se celebraram, de sabedoria espalhada para o bem de todos.
Rayna e eu acendemos a fogueira, com cuidado, e colocamos o vinho e o mel sobre uma das pedras.
Os habitantes da aldeia começam a chegar aos poucos, as faces coradas dos afazeres diários e da expectativa antecipada. Eram celebrados com grande alegria, aqueles actos. Somos uma família, quando nos unimos em cânticos ao redor das chamas.
Estamos todos, e distribuo o vinho. Bebe-se generosamente, solta-se a língua, canta-se aqui e acolá até que, embalados ao mesmo ritmo, damos conta que estamos em roda, a vibrar. E eu, Lilith, no centro.
Rayna rompe pelo círculo e busca-me pela mão até ao charco de água. Estou em meio transe, ouço as vozes a cantar como se de um ruído distante se tratasse. Despe-me as roupas e diz-me para me baptizar no charco. Em voz alta, grita o meu nome, e anuncia-me como a nova Sacerdotisa.
Não tenho vergonha nem sinto pudor da minha nudez, antes um calor se me enrola no corpo enquanto me encaminho, guiada pelo meu espírito-guia, para o centro do pentagrama.
O Povo rodeia-me e sinto a força nas suas vozes e o orgulho nos seus olhos.
A energia invade-me, preenche-me, domina-me, emprenha-me. Deixo-me ir, ao sabor do vento do Norte, senhora do meu caminho.
E tudo se faz luz, e tudo se faz negro, e tudo se faz uno.