Capitulo I
O céu escuro adivinhava chuva embora esta ainda não caísse. As pedras da calçada negra e branca brilhavam com água que escorria dos beirais das casas altas, velhas, com a tinta caindo aos pedaços. O andar tornava-se escorregadio pelo desgaste das pedras misturada com alguns resquícios de folhas trazidas pelo vento e com os papéis vazios das saquetas de açúcar caídos das mesas das esplanadas, na sua maioria vazias. Aqui e ali, alguns resistentes sentados nas cadeiras metálicas ainda húmidas, das chuvas da noite. A sua maioria estrangeiros de visita à cidade, com os seus livrinhos turísticos procurando os pontos que estes indicavam como sendo os melhores. As ruas estavam semi-vazias de pessoas que iam e vinham, passando por ele como se fosse invisível. Os seus passos cautelosos, pela calçada molhada e pelo seu próprio esforço de se manter insonoro, contribuía para essa sua invisibilidade. Parecia que o seu pólo cinza escuro se confundia com o céu, os seus olhos escondidos pelo carapuço puxado para a fronte, não permitiam que alguém reparasse no brilho estranho dos seus olhos. Era apenas mais um na baixa da cidade, percorrendo o caminho para um destino que ninguém se importava em conhecer.
A praça, com o seu cheiro característico de castanhas assadas misturado com os dejectos das pombas que por ali passavam. Em frente à Igreja de Santa Cruz, um casal de turistas tirava uma fotografia à fachada, milhentas vezes fotografada. Ele entrou na igreja deixando-se envolver pela penumbra fria da pedra. Caminhou até meio e sentou-se num banco qualquer. Ainda de capuz e com as mãos nos bolsos, quem olhasse para ele apenas notaria os lábios mexendo-se ao ritmo de uma oração. Poucas pessoas andavam por ali. Mais há frente, uma mulher de idade ajoelhada com a face entre as mãos fazia a mesma coisa que ele. As portas da entrada rangeram à entrada de alguém, seguindo dos passos de uma mulher, pelo som dos saltos, batendo na pedra fustigada dos séculos. Parou de orar e concentrou-se nos passos que se aproximavam da sua direita pelo corredor. Passou por ele sem lhe dar qualquer importância, parando cinco bancos mais à frente sentando-se. Concentrou-se novamente na oração que fazia sempre de sentido alerta. As mãos nos bolsos acariciavam a lâmina fria de um punhal. Ele gostava daquela sensação do frio e da maciez do aço na sua pele dos dedos. Sentia o corpo arrepiado pelo frio da nave, mas era uma sensação que lhe agradava, deixando-o mais desperto. Os nervos retesado estavam alerta para o seu mundo sombrio. Poucos lhe conheciam os hábitos, que ele tão sagazmente tentava esconder.
Não era dado a sentimentos de pena, amor ou ódio. Não se sentia só nunca. Sentia-se talhado para estudar as pessoas e aniquilar. Nada mais nada menos que arrancar da vida cada uma das pessoas que lhe era destinada. Trabalhava a soldo e isso não o repugnava. Era assim que sentia que tinha que ser, sentindo um prazer quase orgásmico cada vez que que tirava a vida a alguém. Gostava do que fazia e isso fazia-o bom na sua "arte". Os dedos acariciavam ainda o punhal, a sua arma preferida. Feito por ele próprio, tinha demorado anos para o aperfeiçoar. Não queria que nada o ligasse exteriormente às armas que usava e isso tinha feito com que ele próprio construísse aquela arma.
A mulher que tinha entrado depois dele levantou-se e desceu pelo corredor. Ele baixou mais os olhos, ficando a ver apenas as pedras do chão imediatamente à sua direita. Ela passou e ele pode apenas a parte final das pernas. Deixou-se estar até os gonzos da porta rangerem outra vez e ele deixar de ouvir os passos. Levantou-se e saiu, caminhando com o mesmo cuidado de não ser ouvido. Cá fora a chuva começava a cair miudinha fazendo as poucas pessoas que passavam começarem a abrir os chapéus de chuva ou apressarem o passo se os não tivessem. Os turistas fugiram a abrigar-se. Olhando para a esquerda, viu pelas costas a mulher que tinha estado na igreja à sua frente, caminhando em passos lentos com o chapéu de chuva aberto. Vestia-se de preto, num conjunto de saia casaco de corte clássico, com uns cabelos loiros lisos escorrendo pelos ombros. Ele seguiu-a.